O presidente Jair Bolsonaro editou, no início de fevereiro de 2021, quatro decretos que facilitam a compra de armas no Brasil. As medidas flexibilizam o estoque dos artifícios para pessoas autorizadas pela lei. Promessa de campanha de Bolsonaro, o armamento da população tornou-se, em seus três primeiros anos de mandato, um dos assuntos mais comentados em Brasília.
Entre outras mudanças, os decretos ampliam de quatro para seis o número de armas que profissionais das Forças Armadas, polícia e da magistratura e do Ministério Público podem possuir. Os dispositivos também permitem o porte simultâneo de duas armas e estabelecem que a comprovação da capacidade técnica para o manuseio de armas para caçadores, atiradores e colecionadores poderá ser feita mediante laudo de instrutor de tiro desportivo, sem necessidade de comprovação junto ao Exército.
Os decretos editados foram: nº 9.846; 9.847; 10.030. Caso não sejam suspensos, as alterações começam a valer 60 dias após a publicação no DOU, ocorrida em 12 de fevereiro de 2021.
Em nota, o Palácio do Planalto afirmou que, com as medidas, busca desburocratizar e ampliar o acesso a armas de fogo e munições no país. “Percebe-se, assim, que o pacote de alterações dos decretos de armas compreende um conjunto de medidas que, em última análise, visam materializar o direito que as pessoas autorizadas pela lei têm à aquisição e ao porte de armas de fogo e ao exercício da atividade de colecionador, atirador e caçador, nos espaços e limites permitidos pela lei”.
O tema, no entanto, sempre foi polêmico para a população e a classe política. E alguns dias após o estabelecimento de novas normas armamentistas pelo presidente, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) alegando que o conteúdo dos decretos era inconstitucional.
O PSB alegou que as normas vão em sentido contrário ao do Estatuto do Desarmamento (lei 10.826/03) – que restringiu o acesso de armas no país – e violam o princípio da separação dos poderes (artigo 2º da Constituição Federal) – pois, segundo o partido, o executivo não poderia alterar a Lei de 2003 sem anuência dos outros poderes.
Atualmente, para se adquirir uma arma o cidadão tem de se encaixar nas exigências da Lei para declarar efetiva necessidade – um trabalho de vigilância, por exemplo. Além disso, a Polícia Federal (PF) tem de comprovar que o indivíduo precisa do artefato. O decreto de Bolsonaro tira esse parecer da PF, e esse foi o empecilho alegado pelo partido.
O julgamento da ação teve início no dia 12 de março de 2021 no plenário virtual do Supremo, ambiente digital em que os ministros têm uma janela de tempo para votar por escrito, sem debate oral. O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou pela inconstitucionalidade do decreto. Fachin disse que “é consenso entre especialistas que mais armas de fogo circulando na sociedade geram aumento da criminalidade e da violência. Dessa maneira, a flexibilização da posse de armas afeta os direitos à vida e à segurança”.
Os votos de todos os ministros deveriam ser contabilizados até 19 de março de 2021, mas o prazo foi interrompido após a ministra Rosa Weber suspender julgamento pedindo mais tempo para analisar o processo. Dessa forma, ainda não há um prazo definido para o fim do parecer do STF. No entanto, caso o Supremo entenda que os decretos são inconstitucionais, nenhuma de suas normas poderá valer.
O Senado também se prepara para rever os decretos de Bolsonaro que flexibilizam regras para compra e uso de armas. Em reunião de líderes no começo de março, a conclusão a que chegaram os senadores foi de que o tema precisa ir a plenário antes de que as regras comecem a valer, em 13 de abril.
“Uma das maiores derrotas do movimento armamentista brasileiro”
À Arko Advice, o advogado, membro do movimento Armas Pela Vida e favorável ao armamento, Diego Gomes, afirmou que o pedido do PSB é infundado. Segundo ele, o Estatuto do Desarmamento prevê que o cidadão, para adquirir arma de fogo, deve declarar – e não comprovar – a efetiva necessidade da aquisição.
“A declaração é o motivo do interesse; e deve estar pautado nas permissões da Lei. Já a comprovação da necessidade, em relação à qual cabe à Polícia Federal uma análise, é requisito previsto para o porte de arma. Deste modo, a regulamentação do governo, ao excluir o exame discricionário da Polícia Federal para a autorização de compra, respeitou o Estatuto”, explica.
Na avaliação de Gomes, caso o STF barre a norma do presidente Jair Bolsonaro, o movimento armamentista brasileiro teria uma de suas maiores derrotas de sua história. “O retrocesso para a pauta seria muito pior do que a própria aprovação do Estatuto do Desarmamento. Se a ação for julgada procedente, qualquer iniciativa pró armamento estaria sepultada. Na prática, estaríamos unicamente sujeitos a opinião subjetiva de magistrados do Supremo Tribunal Federal, com base em uma crença pessoal sobre a inconveniência do armamento civil”, disse.
Mesmo com Estatuto, homicídios continuaram subindo, ainda que mais lentamente
Sancionada em 22 de dezembro de 2003, a Lei 10.826/03 – conhecida popularmente por Estatuto do Desarmamento – impôs diversas regras que determinavam quem poderia adquirir e ter acesso a armas (o direito de posse) e quem poderia circular armado e em quais ambientes (ou seja, o porte de arma). O texto revogou as normas que estavam na Lei 9437/97. Por ela, a idade mínima para a aquisição de uma arma de fogo era 21 anos, e as decisões sobre o assunto cabiam aos estados – porte, posse etc.
O Estatuto, no entanto, entre outras alterações, ampliou a idade de compra para 25 anos e tornou o governo federal responsável pelas definições, e não mais as unidades federativas. Dessa forma, o indivíduo que quisesse uma arma de fogo teria de lidar com a Polícia Federal, e não mais com os órgãos de seu estado.
De acordo com o presidente da época, Luís Inácio Lula da Silva, o projeto serviria para diminuir o número de homicídios em geral e por armas de fogo no Brasil. “Ao sancioná-lo poucos dias antes do Natal, acho que estamos dando um presente aos milhões de brasileiros que, no anonimato, têm dedicado parte de suas vidas, para que a gente possa ver violência diminuir no país”, afirmou Lula. No entanto, segundo um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e uma análise do Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, a lei não resolveu a escalada de mortes.
Em 2004, ano em que o Estatuto do Desarmamento entrou em vigor, o Brasil registrou 48.909 homicídios – não especificamente por arma de fogo; o número é geral. Nos dez anos anteriores, de 1994 a 2003, o número de homicídios registrados vinha crescendo, tendo passado de 32.631 para 51.534, um aumento de mais de 57%, três vezes mais do que o aumento populacional do mesmo período, que foi de 13,4%.
No entanto, a tendência de alta continuou mesmo anos após a aprovação da Lei. Em 2006, dois anos após o início do funcionamento do Estatuto, o país teve 49.704 mortes. Dez anos depois, em 2017, o número total de homicídios foi de 65.602. O crescimento foi de 36,2% em relação a 2006, muito acima do crescimento populacional no período, que foi de 11,19%.
Caso analisemos os dados relacionados a óbitos por armas de fogo, é possível perceber que nos anos seguintes à aprovação do Estatuto o crescimento no número de homicídios em geral e por armas de fogo diminuíram de velocidade. Porém, o valor de mortes continuou crescendo.
Em 2004, o país registrou 34.187 mortes. De 1994 a 2003, o número havia subido de 17.002 para 34.187 (aumento de 101%). De 2006 a 2017, o número de homicídios por armas de fogo subiu de de 34.187 para 47.510 (aumento de 38,9%).
No entanto, segundo Diego, não há como relacionar a diminuição do crescimento com a aprovação do Estatuto do Desarmamento.
“Há inúmeros outros fatores para analisarmos nesse cenário como o crime organizado, contrabando etc. Outro ponto interessante é observado no ano de 1990. No período, mesmo sem a Lei, houve uma considerável diminuição no número de homicídios; tanto no geral quanto por armas de fogo”, afirmou.
Para Fernando Parente, advogado criminalista e presidente da seccional DF da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM), o Estatuto do Desarmamento, sozinho, não tem como reduzir a criminalidade no Brasil. Além dele, a melhora na qualidade de vida da população (saneamento, moradia, educação) deve ser uma pauta de prioridade para a classe política.
“O Estatuto não vai diminuir o crime no Brasil, não há essa relação entre desarmamento e redução na criminalidade. O governo, caso queira diminuir a violência no país, deve atuar em outros setores da sociedade, como a educação, moradia, saneamento, entre outros”, disse à Arko Advice.
Nota
A Arko Advice/O Brasilianista entrou em contato com o Instituto Sou Da Paz, que se posiciona contra o armamento da população, da mesma forma que fez com o advogado Diego Gomes, favorável ao acesso do artefato, no entanto, até o fechamento desta matéria, não obteve resposta.