Em excelente artigo publicado no último fim de semana, o cientista político Murillo de Aragão defendeu a ideia de que vivemos uma crise de confiança e que a ignorância pode nos conduzir ao autoritarismo. O texto é muito esclarecedor, sobretudo porque desnuda como a tecnologia e a hiperconectividade, ao invés de tornarem a sociedade mais bem informada, ajudam a esvanecer o poder político e fragilizam as bases da sociedade que deveriam ser cimentadas na confiança nas instituições.
Ocorre que a ascensão do “bullshit”, o enfraquecimento das instituições e a explosão da quantidade dos “especialistas em tudo” têm impactado não só a confiança na ciência, como também na efetividade dos serviços de inteligência, com reflexo direto nas questões de defesa e segurança.
Historicamente encarregados de identificar ameaças à sociedade e ao Estado, as agências de inteligência desapareceram nos últimos anos, talvez soterradas sob o dilúvio de notícias falsas produzidas aos borbotões e na desconfiança política histórica. Teorias da conspiração tomaram espaço nas mídias e o absurdo passou a ser parte do nosso dia a dia. A coisa só não foi pior porque as decisões das Forças Armadas continuam sendo fortemente embasadas nos seus serviços de inteligência.
O sistema de inteligência de defesa, do qual tive a honra de fazer parte por mais de quinze anos, continua firme no seu propósito de informar as autoridades militares, o que explica em larga medida, porque as crises recentes não escalaram até atingir o ponto de não-retorno. No entanto, parece que as Forças Armadas são exceção e não a regra.
Instituições de estado que baseavam suas decisões mais críticas em estudos técnicos não só perderam sua capacidade de enfrentar problemas com lucidez, como também passaram a ser pautadas por “especialistas” com acesso facilitado aos decisores. Os ditos “influenciadores digitais” com suas análises rasas, mas de impacto profundo, substituíram a reflexão e a busca de conhecimento em fontes variadas confiáveis. Assim, autoridades de altíssimo nível começaram a decidir seguindo não somente seus próprios instintos de sobrevivência, mas algo parecido com o knee jerk, aquele ato reflexo que temos quando nosso joelho é atingido por um martelo de borracha, sempre que leem um tweet.
Até pior que as fake news são as atos-reflexos que delas decorrem. Não poucas vezes assistimos autoridades envergonhadas tendo que se desmentir, em público ou nas redes sociais, palavras ou atos que soariam absurdos se antes de serem ditas ou feitos fossem melhor analisados. O mergulho fundo no mundo das mídias sociais foi visto somente como oportunidade para ganhar seguidores, mas não como risco institucional. Como resultado, temos hoje um círculo vicioso onde a sequência de desmentidos confunde a sociedade e a fazem perder a confiança nas instituições.
A ameaça cibernética talvez seja o grande desafio de defesa e segurança no pós-pandemia. Os meios de disseminação de informação e desinformação, que antes eram acessíveis somente aos estado-nação, hoje estão de posse de indivíduos ou grupos, associados ou não a países hostis. É muito provável que a próxima pandemia não seja provocada por um vírus biológico, mas pela proliferação de vírus virtuais, que já atuam em nível endêmico em algumas regiões do Mundo, como vemos na crise russo-ucraniana.
Nesse aspecto, as Forças Armadas estão aperfeiçoando seus serviços de inteligência, como pode ser observado pela evolução recente das estruturas de defesa cibernética. No entanto, ainda é pouco. Há muito o que ser feito no campo da segurança das informações.
Concordando com o artigo do Murillo de Aragão, faço um adendo. Precisamos urgentemente repelir os geradores de fake news, ao mesmo tempo em que temos que fortalecer as instituições de estado que lidam com informações estratégicas críticas. Não se trata de censurar, mas valorizar o senso crítico e fugir da influenciação nefasta de mídias que aparentam ser feitas para propagar a desconfiança e a discórdia entre agentes e instituições de Estado. As ferramentas para reconstruir a confiança ainda existem, mas podem desaparecer facilmente se não forem reforçadas.