Não são novos os desafios de governantes para ampliar conexões com a população que governam. Normalmente, iniciam-se governos com taxas de aprovação acima dos valores vistos para os meses subsequentes, período em que muitas expectativas se tornam ceticismos e o ceticismo torna-se decepção. É parte do jogo, dada a complexidade das teias da política profissional, que derruba qualquer conjunto de promessas de palanque com o peso que a realidade orçamentária e de coalizão partidária impõem.
Para alcançar feitos, é necessário abrir mão de outros. É, acima de tudo, uma aposta, em acertar temas que repercutem no dia a dia das pessoas e impactem positivamente suas vidas. Há espaço para a Virtú, a capacidade do governante.
Da mesma maneira, é parte do jogo também a pressão pela aprovação dos projetos e de cumprimento de promessas pelos que não se sentem representados. O problema aumenta quando as fatias deste grupo são enormes, como é o caso do Brasil de hoje.
O desempenho de governantes está, como mostram pesquisas em diversos países, cada vez mais descolada do desempenho da economia. Fatores como a pauta de costumes estão cada vez mais relevantes no debate. Eleições modernas, marcadas por fortes votações por rejeição, em que se escolhe um candidato não por adesão à sua pauta, mas por rejeição a outro, impactam enormemente estes números.
Começa-se o governo em um período reduzido de ‘lua de mel’, em que as expectativas são grandes. O ceticismo já é rei em boa parte do eleitorado, que está dividido. Com o passar do tempo, de promessas não cumpridas e muito gogó, amplia-se a decepção.
Há uma incapacidade sistêmica de governos eleitos em manter contato e representar, latu sensu, suas bases de apoio, para dar respostas às demandas que venham delas. Gasta-se muita energia e capital político em responder às crises subsequentes, mas não é dada a devida atenção aos sinais prévios, que transbordam.
Além disso, no Brasil, o ‘sistema’ e a má qualidade do homem público são fatais. O primeiro, permeado pela distorção do interesse público e privado, corrupção a rodo e falta de qualidade de debate público, não dá espaço para boas cabeças que entram no jogo. O segundo fator é ainda pior, pois não adiantaria apenas uma renovação completa dos atores, a classe política é reflexo de nossa população, é necessária uma renovação plena do ideal da Res Publica, da coisa pública. Sociedades avançadas são aquelas que dão real importância ao capital humano.
Combate na política
Por isso, e por tanto mais, cidadãos não se sentem mais representados. Os partidos são, em termos gerais, empresas. Seus interesses privados estão expostos à luz do dia. Com um fundão eleitoral turbinado, não há preocupação alguma com a real conexão com as bases. Por isso, cada vez mais outsiders ganham espaço, apresentando propostas mirabolantes, mas que criam expectativas no eleitor. O político ‘tradicional’ perde cada vez mais credibilidade. E fazem um esforço enorme para isso, vale lembrar.
A política, é importante lembrar, nasce justamente da necessidade de transferência da arena física, do combate pela força, para a arena da discussão de ideias. Se antes, em termos abstratos, vencia o braço mais forte com espada na mão, a política retira a batalha do campo físico para o campo das ideias. Há força, influência e poder no jogo, evidentemente. Mas a existência da tribuna, no lugar da espada, já poupou muito sangue de ser derramado. A pena deve ser mais forte que a espada. É uma questão civilizatória.
Por essa e tantas outras razões, partidos políticos e governos deveriam prestar atenção em alguns fatores, que alteram características do jogo político de tempos modernos. A identificação popular de hoje se dá com pessoas, não mais com partidos. A profissionalização da política, como já muito trabalhado pela teoria política, descola os interesses das bases dos interesses dos detentores dos cargos, que passam a defender e dedicar-se à essa manutenção de poder. O excesso de burocratização e corpulência estatal são vistos como empecilhos ao desenvolvimento. A agenda de desburocratização é fundamental para tornar mais pessoas capazes de buscar seu sustento.
Além disso, já é pauta batida o fato de que a arrecadação brasileira é enorme, pagamos impostos como os países nórdicos, mas em troca recebemos serviços péssimos, como países subdesenvolvidos. O cenário visto hoje é de uma busca insana e incessante por mais receita, mais arrecadação. E nem sequer cogita-se reduzir gastos. Quem entende do riscado sabe que o aumento de receita não resulta em melhores serviços. Resulta em pagamento de despesa, em pagamento de emendas que muitas vezes desaparecem misteriosamente, em pagamento de folha salarial.
Governo central incapaz
Em Brasília, costuma-se tratar frequentemente o país como algo único, padrão, uma ‘média’, sendo que o Brasil real é feito por ‘Brasis’, dizia Darcy Ribeiro. As complexidades são infinitas. Um governo central é incapaz, quase que por definição, de solucionar essa infinidade. A criatividade das próprias pessoas é importantíssima, mas para isso, precisam ter dinheiro. O acesso aos dados da ‘microeconomia’ pelo governo central é infinitamente menor do que o mundo real ao redor.
Agora, indo do geral para o específico, Lula se deparou novamente com um baita problema nesta semana. Ao realizarem a comemoração do 1 de maio, deparou-se com cerca de 1600 pessoas apenas para prestigiar o evento. Lula se dá conta de que perdeu as ruas. O governo não está falando a língua das pessoas. O descolamento é enorme e notável. E sem elas, não há pressão suficiente para avançar com qualquer pauta. As ruas são definidoras em agendas, das mais comuns às mais tensas, como processos de impeachment. É sempre uma conjuntura de fatores, mas sem elas, não há resultado.
Entre as inúmeras razões do descolamento do governo com suas bases, destaco um exemplo. A proposta do governo de regular o trabalho de motoristas por aplicativos deixa claro este aspecto. O governo, paralisado no tempo, entende que maior regulação é maior qualidade de trabalho. O que não esperavam é que, ao sair dos Palácios e olhar para as ruas, se deparariam com a categoria em peso se mobilizando contrariamente à regulação. Os motoristas entendem que seus ganhos, já minguados, serão prejudicados com contribuições ainda maiores. O verdadeiro vencedor nesta mudança seria o próprio governo, com aumento de arrecadação. As corridas ficam mais caras, os motoristas ganham menos.
É urgente que Lula e seus companheiros olhem para baixo. Lula precisa de auxiliares que lhe alertem da realidade. Vive em um mundo que beira a fantasia, repleto de ‘Conselheiros Acácio’, do grande Eça de Queiroz. Porém, o rei está nu. A popularidade cai, enquanto os números da economia estão estáveis. Não é suficiente. A narrativa do governo não está ‘colando’ como gostariam. A oposição ganha força. Viagens internacionais para consolidação de alianças e fluxos comerciais são fundamentais, mas em exagero, passam a ser vista como curtição. Bajulação de regimes autoritários não ajudam em nada a narrativa da defesa da democracia. Aumento de arrecadação não ajuda em nada na melhoria da prestação de serviços públicos. A revisão dos gastos é fundamental.
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos…” Fernando Pessoa.