O direito dos outros


O fim do processo de impeachment deve ser visto apenas como uma etapa de um árduo esforço de reconstrução nacional.

A Operação Lava-Jato e outras iniciativas congêneres ainda não concluíram sua missão de desvelar a corrupção sistêmica, que adoeceu o Estado brasileiro, exibindo uma teratológica dimensão do patrimonialismo, que nem mesmo Raymundo Faoro, em “Os Donos do Poder”, fora capaz de antecipar.

Além da superação da crise econômica, mormente a fiscal, construída com requintes de maldade e ignorância nunca vistos, há muito que fazer.

Não se pode esquecer que a corrupção se entrelaça com o abuso do poder do Estado, de onde se deduzem a arrogância e a intemperança dos que governam.

O Estado brasileiro, desde a Independência, tem uma índole marcantemente autoritária, inaugurada com a nossa primeira Constituição (1824), outorgada por Pedro I, após a dissolução da Assembleia Constituinte, sufocando as pretensões liberais e dando causa a revoltas, como a Confederação do Equador em Pernambuco.

Desde então, o Estado brasileiro guarda estrita fidelidade ao temperamento autoritário, frequentemente com aval popular.

A propósito, Gilberto Freyre, em “Casa Grande e Senzala”, ao qualificar o Brasil como uma “Rússia americana”, salientava o fascínio que um “governo másculo e corajosamente autocrático” exerce sobre o povo.

Os privilégios processuais e procedimentais do Estado em desfavor do cidadão e da empresa, são evidências de abuso de poder no Brasil, ainda que, por vezes, tenha respaldo em lei.

Para exemplificar essa assimetria de prerrogativas, é suficiente uma breve incursão no campo tributário.

São desarrazoados os privilégios processuais concedidos à Fazenda Pública no contencioso judicial. Não se alegue a supremacia do interesse público, especialmente quando se sabe que o particular não dispõe dos recursos postos à disposição do Estado.

A iliquidez dos créditos tributários acumulados e as restrições à compensação de tributos são ofensivas ao princípio constitucional do não confisco.

De igual forma, o não pagamento de precatórios, contrastando com a exigência de pontualidade no cumprimento das obrigações tributárias, fere abertamente o princípio constitucional da moralidade na administração pública.

No processo administrativo fiscal, a merecer uma reforma profunda, a questionada tese da paridade, entre o fisco e o contribuinte, é infirmada pela existência do voto de qualidade do representante do fisco.

A insistência com a aplicação de sanções políticas, nomeadamente a exigência de certidões negativas para contratação com o setor público e a participação em procedimentos licitatórios, é repudiada tanto por decisões do STF, quanto pelo senso comum, pois somente a própria atividade econômica do devedor seria capaz de propiciar recursos para saldar sua dívida.

As desproporcionais prerrogativas do Estado dão ensejo à condescendência com o abuso de autoridades.

A vigente legislação dos crimes por abuso de autoridade (Lei nº 4.898, de 1995) é pífia, porque estruturada em tipos penais abertos de difícil aplicação, com penas ridículas. Sancionada no governo militar, parece concebida mais para proteger do que coibir o abuso.

O Senado Federal abriu o debate sobre anteprojeto de lei versando sobre a matéria, produzido em 2009, no âmbito do II Pacto Republicano, e aprovado pelos representantes dos três Poderes.

O anteprojeto, elaborado sob a liderança do jurista Rui Stoco, especifica cuidadosamente os tipos penais e inova ao admitir a ação privada subsidiária, quando a ação pública não for intentada pelo Ministério Público.

Causa surpresa a reação de algumas organizações quanto ao anteprojeto, inclusive com apelos para sua completa rejeição.

É óbvio que se trata de um anteprojeto que, mesmo antes de sua virtual tramitação no Congresso, se sujeita a correções e aperfeiçoamentos.

Repudiá-lo integralmente traduz uma opção por preservar a vetusta legislação vigente, que jamais puniu uma autoridade, e prefere tratar os cidadãos como se fossem súditos.

 

 

 

 

 

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