Putin atingiu seu objetivo. Deixou os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) desesperados, descoordenados e implorando para que o presidente russo lhes desse ouvidos. A abordagem diplomática teve um papel-chave de relativização da agressão. Putin usou uma ginástica conceitual para iniciar uma invasão, resguardando-se (ao menos para satisfação pessoal e do povo russo) de que na prática não se trata de uma invasão, mas de uma missão de paz nos dois países recém-criados e não reconhecidos pelos países Ocidentais. Putin invadiu a mente não só da Ucrânia, como a de líderes de vários países, do mercado financeiro e da imprensa internacional e a de cidadãos por todo o planeta.
De fato, a Ucrânia não levou uma surra pela sua “ousadia” ao se juntar ao inimigo: ela está sendo recolhida pela orelha e levada novamente ao seio da “mãe Rússia”. Putin sabe que não há Margaret Thatcher, Ronald Reagan, ou Helmut Kohl no mundo atual dispostos a enfrentá-lo olho no olho, dente por dente. Ele também não é um Gorbachev, flexível e bonachão, sendo mais similar ao seu mentor e ídolo, Yuri Andropov. Consegue muito fazendo pouco. Essa vantagem poucos no mundo têm. Talvez ninguém mais além dele.
Yuri Andropov, líder soviético entre 1982 e 1984, é quem melhor pode oferecer dicas sobre o processo de tomada de decisões de Putin. Um líder sagaz, Andropov, enquanto embaixador soviético na Hungria em 1956, jogou inteligentemente com Imre Nagy e Janos Kadar. Mostrava tranquilidade e compreensão ao se comunicar com Nagy sobre as reformas que o então líder húngaro queria implementar, enquanto preparava Kadar para a sucessão sobre Nagy, uma vez que as tropas soviéticas esmagassem o levante húngaro de 1956.
Em 2020, Putin mostrou tranquilidade e compreensão com o governo armênio de Nikol Pashinyan durante a guerra de Nagorno-Karabakh. Fornecendo equipamentos aos armênios contra o Azerbaijão, a Rússia passou de importante aliado armênio para se tornar vital para o governo Azeri em curto espaço de tempo, num desfecho considerado uma traição pelo armênios, enquanto russos se defenderam argumentando que foram responsáveis por um cessar-fogo.
Andropov teve um papel ímpar na inteligência soviética, a área onde Putin se formou como espião, político e estrategista. Especialista em guerra psicológica, Andropov consolidou uma superioridade soviética nesse setor, à medida que o poderio econômico americano se tornava desproporcional em relação ao da URSS. O uso da inteligência e de ações que enfraqueciam a confiança e a moral do inimigo se tornou o principal modus operandi.
Com Putin, o que se chamava “active measures”, um conjunto de ações de inteligência e subversão praticados desde os tempos da Cheka, nos anos 1920, e transformado em matéria obrigatória na academia Andropov de inteligência da KGB, a capacidade de operações de inteligência, espionagem, subversão e desinformação foram integradas às capacidades cibernéticas.
Dentre esses aspectos, a desinformação possui um papel primordial. O que popularmente chamamos de “fake news” é uma arma utilizada há décadas, que ganhou maior capacidade de alcance, à medida que as redes sociais dominaram o ambiente global. Ion Pacepa, ex-membro do Securitate, o serviço secreto romeno, afirmou que a desconstrução de personalidades ocidentais era uma especialidade soviética (a Securitate teve papel importante de disseminação, assim como fizeram com a “reconstrução” da imagem do Papa Pio XII, para que este fosse visto como o “Papa de Hitler”.)
Por mais que neguem, o FBI, a CIA e o judiciário concluíram que a Rússia teve um papel de protagonista nas eleições americanas de 2018 por meio da disseminação de desinformação. Quando vemos o governo russo anunciando retirada de tropas e países da Otan identificando incremento nas tropas, vemos desinformação em tempo real. Desinformação é o maior componente da guerra psicológica no século XXI. Para cada verdade, há uma versão encapsulada em uma embalagem mais atraente.
Nós, do “Ocidente”, não sabemos jogar guerras psicológicas. Somos apenas alvos fáceis de tudo o que foge à norma, do esperado e invade o campo minado da incerteza. Precisa-se de algo mais além que jogar incertezas em um mundo regido estritamente por uma economia interconectada, leitora de gráficos? Putin tem uma economia menor do que a da Itália, menos poder militar que os EUA e menos dinheiro que a China. Porém, como um vilão tipo James Bond, possui uma inteligência emocional superior, frieza de quem não se importa com o resultado da roleta e uma forma ímpar de ignorar líderes de países ocidentais.
Numa guerra psicológica, a intenção vale mais do que a ação. Principalmente se ela for contra o óbvio e gerar especulações sobre a razão por trás de algo que não é racional. Os EUA, o Reino Unido e outros membros da Otan especulam sobre datas em que ocorreria uma invasão ampla em todo território ucraniano. A lógica militar desses países é desafiada diariamente pela mudez e inatividade aparente do governo russo. À medida que Putin fica quieto, mexendo peças no tabuleiro e não se recusando a conversar unilateralmente com nenhum líder que o aborde (Biden, Olaf Schöll, Macron), as ofertas para que ele seguisse sem fazer nada aumentavam.
Se por um lado a imprensa especulava quais tipos de sanções seriam aplicadas contra a Rússia, por outro, membros da Otan iam construindo um pacote de oferendas que afastavam a Ucrânia cada vez mais do mundo Ocidental onde ela tanto almeja ingressar. Putin, paciente, buscava fechar os flancos de possíveis retaliações econômicas. O timing do anúncio ao lado de Xi Jinping sobre uma parceria “carnal” não poderia ser melhor. Um eixo se formava oficialmente, fazendo com que o apreço de Putin para com a Europa ficasse apenas no gás e, para com os EUA, se reduzisse à insignificância de uma relação comercial de US$ 30 bilhões.
O crescimento das exportações de petróleo, gás, lítio, alumínio, entre outras coisas para a China oferece a proteção econômica e comercial necessária para dobrar a aposta sobre a Europa. O grande golpe até o momento, partiu de um dos mais silenciosos líderes europeus, e “novato” na diplomacia ocidental: Olaf Scholl. O chanceler alemão cancelou o acordo do Nordstream 2. Esse foi, até o momento, o golpe mais forte sofrido por Putin. A dúvida cai em cima da reação: Putin recua ou esse movimento alemão desencadeará uma série de ações mais agressivas da Rússia?
As tropas na fronteira ucraniana são, obviamente, uma resposta aos diálogos entre Volodymyr Zelensky, presidente ucraniano, e a Otan, mas também são uma forma de imposição (seja pela guerra psicológica, ao usá-las como forma de pressão, ou, ainda, se forem à guerra convencional) às manifestações ocidentais em relação a violações de direitos humanos, à defesa internacional de Alexei Navalny, às sanções contra empresários específicos, à escalada na guerra cibernética, à tentativa de os EUA de oferecer uma alternativa ao gás russo por meio de gás natural liquefeito, entre outras.
A crise entre Rússia e Ucrânia marca, definitivamente, o divórcio entre Rússia e o Ocidente. Quando Putin se alinha “carnalmente” à China (algo anunciado durante as Olimpíadas de Inverno em Pequim), ele está apenas complementando um pacote maior de elaboração de dois eixos no mundo. Se a Rússia não possui mais a envergadura da União Soviética, nem uma fração da economia chinesa, Moscou ainda possui capacidades que nem EUA, UE e China possuem: liderança firme de um presidente capaz de suprimir divergências internas (nem Xi tem essa capacidade tão forte quanto Putin), um serviço de inteligência ativo e experiente em operações cibernéticas e de desinformação, controle relevante da fonte energética europeia e ausência de medo.
Tudo o que vemos hoje começou precisamente em 2008, durante uma reunião da Otan em Bucareste. Nessa ocasião, o então presidente americano George W. Bush convida (informalmente) a Ucrânia e a Geórgia a ingressarem na Otan. Nada poderia ser pior para a Rússia do que ver dois países “semi-russos”, dentro da esfera de influência do inimigo. Naquele ano, Putin invadiu a Geórgia com uma facilidade pouco vista. Esse gesto foi suficiente para afastar as pretensões do pequeno país de 4 milhões de habitantes (e país natal de Joszef Stalin) a esquecer a Otan de vez.
Com a Ucrânia, a história não foi a mesma. A invasão de 2014 não afastou a Ucrânia da Otan, apenas a aproximou. Para Putin, não invadir a Ucrânia aumenta o risco de perdê-la para sempre. A ida de Zelensky a Munique, para a Conferência de Segurança, piorou a situação nos olhos de Putin. Ao afirmar no evento que a Ucrânia deve ingressar na Otan imediatamente, Zelensky não foi so contra as instruções de Macron e Olaf Scholl, mas fez com que Putin raciocinasse que uma invasão a Ucrânia talvez seja a única saída para os objetivos geopolíticos russos de manutenção de esferas de influência.
Vladimir Putin poderá decidir amanhã, na semana que vem ou daqui a seis meses, por invadir totalmente a Ucrânia. Pode também decidir por não fazer nada e se ancorar nos fantoches das Repúblicas de Donetsk e Luhansk. Ele, no entanto, sabe que o grande valor estratégico de suas ações são as especulações em torno das preparações. A execução do ato confirma tudo que o Ocidente espera dele.
Putin gosta de surpreender e demonstrar que o “outro lado” não entende nada sobre ele. Sendo o único líder global que atuou como espião (que sabemos), ele não consegue e nem quer se desvencilhar dessa forma de pensar. Gosta de ouvir os outros, pois assim coleta informações, gosta de gerar pressão até pela estética do ambiente (como na reunião com Macron), demonstra ações contraditórias em tempo real (suposta retirada de tropas de um lado e incremento em outro), usa a diplomacia convencional em paralelo a um ataque cibernético contra o governo e bancos ucranianos. Do que vale uma aliança militar formidável dos países da Otan, se o simples ato de ser deliberadamente contraditório é capaz de gerar caos?
Um indício de que Putin sabe que invadirá a Ucrânia agora ou no futuro próximo passa pelas demandas colocadas na mesa. Exigir que a Otan firme um compromisso ad eternum de não incorporação da Ucrânia é uma questão que sabidamente não receberá apoio de nenhum país Ocidental. Isso significaria uma desmoralização enorme para a Otan. Deixar o oponente sem opções, nem mesmo a opção de guerra, é o xeque-mate para que Putin avance com seus objetivos. Naturalmente, as sanções serão aplicadas. Porém, a partir do momento em que as sanções não geram medo, torna-as obsoletas. Uma coisa são sanções em cima de países como Cuba, Venezuela e Coreia do Norte. Outra coisa são sanções em cima da China, Rússia, Irã etc. Esses países simplesmente se unem para criar um ambiente paralelo de sobrevivência mútua, onde as sanções perdem seu valor principal: exclusão do mercado consumidor ocidental.
Um outro ponto de extrema importância é que Putin já deixou claro o caminho para justificar uma invasão. Não se trata apenas do ingresso ucraniano na Otan, mas também a questão das zonas do país sob controle de separatistas pro-Rússia. Donetsk e Luhansk são duas regiões ricas, sob o controle de separatistas desde 2014. Mudando o foco (temporariamente) da Otan para a proteção desses separatistas pró-Rússia, Putin abre um segundo flanco de embates diplomáticos, numa outra virada de mesa que torna ainda mais complexa o encontro de uma solução para este conflito.
A forma de derrotar Putin passa pela forma de pensar do presidente russo. Se percebe que a geração de incertezas é o fator número um de instabilidade no processo de tomada de decisões governamentais e do setor privado entre países ocidentais, ele indica que qualquer tipo de incerteza e de imprevisibilidade o confundiria. Infelizmente para a Europa, e felizmente para Putin, o Nordstream 1, ainda faz com que a União Europeia fique relativamente retraída no cantinho da sala das superpotências.
Sem ter como agir, mas se valendo de peregrinações a Moscou voltadas para implorar normalidade, a UE errou a mão a depender tanto de uma Rússia que sabe como utilizar essa vantagem estratégica. A quebra dessa dependência, via EUA e gás natural liquefeito, invariavelmente invocaria outras razões históricas para que Putin fizesse um novo movimento militar com intuito de desestabilizar psicologicamente algum membro atual ou futuro da Otan.