Não faz muito tempo que, para surpresa geral, tínhamos zerado a dívida externa pública (líquida de reservas em divisas), obtido uma boa classificação de risco das agências internacionais (algo que se perdeu depois) e parecíamos ter entrado num círculo virtuoso de inflação baixa e crescimento satisfatório. A atual sensação, contudo, é de que, passada a hecatombe dilmista, a União e a grande maioria dos Estados e municípios brasileiros acordarão basicamente quebrados, entre outros problemas.
Investir que é bom, nem pensar, especialmente em infraestrutura. Há muito tempo que os investimentos públicos desabaram, e nem assim temos sido capazes de nos organizar adequadamente para passar à iniciativa privada boa parte das tarefas que ficaram sem dono. Virou moda dizer que, afora os casos que podem ser objeto de “concessões”, a saída é fazer parcerias entre o governo e o setor privado (as chamadas PPP), em que o Estado é liberado de investir, mas tem sempre de arranjar fundos para bancar um certo fluxo de pagamentos futuros não cobertos pelos usuários – as chamadas contraprestações.
É aí, exatamente, que mora o perigo. Premidos pelo aperto financeiro, essas contraprestações acabam se tornando o primeiro alvo da política de ajuste fiscal, pois é menos oneroso politicamente dar calote nos sócios dessas parcerias do que nos servidores ou nos fornecedores de serviços conhecidos como básicos, tipo saúde e segurança.
E as garantias? Desprovidos de ativos óbvios, os entes públicos acabaram montando fundos garantidores bastante precários para bancar o pagamento desses compromissos. Sem cumprir seu devido papel, aos poucos o instrumento da PPP começa a perder atratividade para o sócio privado, o que é lastimável.
É nesse contexto que se tornam cada vez mais importantes as oportunidades de securitização de recebíveis tributários no setor público, que existem efetivamente, mas são pouco conhecidas ou têm sido mal administradas, quando poderiam gerar recursos expressivos para resolver as atuais carências. Trata-se, basicamente, da antecipação, via mercados financeiros, de fluxos de recebimentos de recursos que ingressarão futura e regularmente no setor público, mas que acabam dormindo nas prateleiras, como no caso da “dívida ativa” de contribuintes para com o fisco, difíceis de cobrar.
Ora em tramitação no Senado, o projeto de lei complementar 204/16 procura consolidar as normas relacionadas com esse tipo de securitização, conforme artigo recente de Salto e Ribeiro,[1] mas precisa ser aperfeiçoado em alguns aspectos relevantes, antes de ir à votação. O principal é que a “modelagem” implícita no projeto limita desnecessariamente as possibilidades de securitização, exatamente quando é mais aguda a carência de recursos. O alerta para esse ponto veio do colega Carlos Kerbes, especialista no assunto, com quem devo apresentar uma explicação mais detalhada no Fórum Nacional, 14/09/16, do INAE (www.inae.org.br).
Tendo restringido os casos de securitização de “créditos tributários” apenas aos chamados parcelamentos, conforme prática adotada até agora, e tendo focado apenas no estoque específico desses recebíveis (algo ao redor de R$ 80 bilhões, no caso da União), a aprovação do projeto deverá permitir o recebimento imediato de algo que não deve ultrapassar R$ 55 bilhões, diante de um estoque total de créditos que alcança a marca impressionante de R$ 1,6 trilhão.
O ponto é que hoje já existe tecnologia para adotar uma modelagem capaz de jogar foco sobre os fluxos totais regulares decorrentes do estoque total de créditos e não apenas dos parcelamentos. Na União, esse fluxo alcança a expressiva marca de R$ 20 bilhões anuais, que tendem a se repetir todos os anos, dos quais, para uma estruturação no período de 20 anos, pode derivar uma fatia de “ativos senior”, à vista, de cerca de R$ 70 bilhões (e não apenas os R$ 55 bilhões acima referidos), sem falar no mais importante: “ativos mezanino” da ordem de R$ 13 bilhões anuais, com uma razoável probabilidade de recebimento validada por alguma conceituada agência de risco, ao longo desse mesmo período.
Bastará ampliar o alcance da medida no artigo respectivo do projeto. Esses recebíveis seriam passíveis de troca por debêntures emitidas conforme as regras da CVM, que, por sua vez, poderiam compor os fundos garantidores de PPP acima mencionados, e, assim, constituir uma garantia efetiva e expressiva para as tão desejadas parcerias no setor de infraestrutura.
Finalmente, cabe rever, no projeto, o impedimento de que os atuais prefeitos concretizem financeiramente a operação desse mecanismo nos últimos 120 dias de governo, faltando definir alguma regra de transição. Além disso, deve-se remover a restrição de que os ativos a serem cedidos sejam aqueles existentes na data de publicação da lei a que ele der origem. Em vez disso, a limitação poderia ser para os créditos existentes no momento da cessão efetiva.
[1] Felipe Salto e Leonardo Ribeiro, no Estadão de 3/08/16, p. B2.