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Sereníssimas Repúblicas

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Passadas as eleições e com o início do novo governo, o Brasil assiste, atônito, ao cenário de rispidez severa na política. Mas não só aqui. Ao redor do mundo, as tensões são crescentes, com percepções recorrentes de que os governos não entregam o que prometem e o sistema político vigente aparenta estar fragilizado. Nos países que se utilizam de modelos de democracia ‘liberal ocidental’, é percebido um efeito no qual os governantes eleitos não são escolhidos (em uma boa parte dos votos que recebem) por concordância com plano de governo proposto, mas, pelo contrário, a grande motivação da escolha é a rejeição pelo principal opositor. Os eleitores não escolhem projetos de governo, escolhem tirar o governante que está no poder. Na ciência política esse fenômeno já tem nome, é o ‘partidarismo negativo’ (negative partisanship) e acarreta consequências potencialmente graves para o campo da negociação política e a serenidade da República.

A primeira delas é que, apesar de a vitória numa eleição presidencial exigir um número significativo de votos, essa sustentação popular que elege um presidente só se mantém viva e firme enquanto há o adversário do outro lado, enquanto ‘ameaça’ eleitoral. Passadas as eleições e com a ausência do adversário no plano de ação política concreta, o novo presidente vê arrefecer boa parte desse seu apoio, já que a construção se deu mais pela rejeição do adversário do que por suas virtudes ou méritos. Há, com isso, uma perda de popularidade em pouquíssimo tempo.

O apoio parlamentar ao governo, por sua vez, ainda que seja construído mais pelos acertos realizados nos bastidores com o governo eleito do que pelas convicções políticas dos parlamentares, possui um componente importante que é a sensação de ‘temperatura’ nas bases eleitorais. Se há perda de popularidade de um governante, os parlamentares requerem mais benefícios para manter o apoio ao governante, já que os custos eleitorais dessa sustentação estão maiores que antes.

Além disso, as enormes expectativas que são criadas ao longo da campanha, por conta de promessas eleitorais, causam a sensação de traição para parte dos apoiadores do vencedor. Em eleições não polarizadas, sem a presença do fenômeno do partidarismo negativo, em que não há uma concentração enorme do número de votos em apenas dois candidatos, há uma melhor divisão do eleitorado conforme suas crenças e convicções. Porém, no cenário descrito, a concentração dos votos no candidato vencedor e em seu antagonista faz com que muitos grupos distintos se reúnam num mesmo palanque. Com isso, há, inevitavelmente, que se fazer escolhas sobre quais agendas políticas serão priorizadas.

No palanque de Lula, a exemplo, em que estavam reunidos Henrique Meirelles e Guilherme Boulos, há, invariavelmente, de se escolher uma das agendas. Algum deles será enganado. Não há conciliação entre pautas e concepções tão distintas sobre economia, emprego e produtividade. Assim, novos governantes encaram também o delicado desafio de equilibrar da maneira mais eficiente possível grupos antagônicos reunidos no entorno de sua campanha eleitoral. O resultado, normalmente, é o descontentamento de boa parte desses grupos, dada a impossibilidade de se realizar todos os desejos.

Quando Dilma optou por realizar cortes na pasta de educação, movimentos estudantis se mobilizaram contra o governo. Quando Bolsonaro não concedeu reajuste prometido para categorias policiais, movimentos internos realizaram protestos e manifestaram intenso descontentamento. Os exemplos são inúmeros. Não há como realizar todas as promessas. O que é plausível, mas absolutamente inviável eleitoralmente, é não prometer. Mas assim não se venceria uma disputa eleitoral.

Há exemplos no mundo todo de presidentes eleitos com votos creditados à rejeição ao presidente incumbente. Para citar apenas alguns dos vizinhos: Alberto Fernandez, na Argentina, que derrotou o então presidente Mauricio Macri, apresenta hoje uma aprovação que oscila em torno de apenas 20%. No Chile, o então recém-eleito presidente Boric, que venceu o então presidente Piñera, amargurou uma derrota no plebiscito que propunha uma nova constituição para o País. Hoje, encara uma taxa de reprovação que atingiu 70% nas últimas sondagens. No Peru, Castillo, que derrotou a filha de Alberto Fujimori, acabou preso após tentativa de dissolução do parlamento enquanto seu processo de afastamento era julgado. Todos eleitos porque conseguiram reunir opositores ao outro candidato, mas que não possuíam apoio integral dos eleitores para a aplicação de suas agendas. Boa parte deles também não conta com maioria no Congresso de seus países. Eleitos pela rejeição ao outro, não conseguiram eleger maioria nas bancadas na votação para o legislativo.

No modelo democrático de eleição há, como visto, problemas graves com relação às expectativas em que os cidadãos criam e os resultados concretos que as classes políticas conseguem entregar. Na teoria política, desde os teóricos das Elites, no séc. XIX, há apontamentos para a divisão inconciliável entre representantes e representados. Outras teorias apontam para o problema na democracia participativa que, por convocar os eleitores apenas no período eleitoral, gera um abismo entre o que acontece nos campos decisórios e a repercussão entre as pessoas comuns. Há também outras várias maneiras de se abordar o problema. De uma forma ou de outra, não faltam diagnósticos de que há, de fato, um problema estrutural a ser encarado.

Com Lula não será diferente. Conquistou 51% dos votos e sabe muito bem que muitos não foram votos para sua agenda, mas sim de rejeição a Bolsonaro. Na hora de aplicar seus projetos, terá de equilibrar muito bem os diversos grupos que trouxe consigo na campanha. Alguns, como o grupo de Henrique Meirelles, já apontam preocupações com relação à agenda econômica. Outros, como o grupo de Mercadante, estão satisfeitos com o que Lula está desenhando. O tempo dirá se a situação permanecerá assim. Há, no tabuleiro da política, grande influência também do acaso, que altera repentinamente vários cenários. Lula sabe disso e conta com aliados nos principais postos para contornar os problemas que aparecerão. O apoio eleitoral que teve durante as eleições, porém, está fora do seu raio de controle. O partidarismo negativo está solto por aí.

Em uma obra do bruxo do Velho Cosme, chamada Sereníssima República, a prática de apropriação do Estado por grupos, através de malfeitos não-republicanos, servia para que se conquistasse a serenidade. No Brasil, apesar dos esforços na aplicação do método, não notamos nada próximo de serenidade.

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