A inevitabilidade da reforma foi resultado do debate, da pressão, dos lobbies, da vontade presidencial, da mídia, da recessão crônica, tudo a desembocar no Parlamento. A síntese destas vontades difusas e contraditórias materializou-se na Câmara dos Deputados
Itamar Garcez *
A Câmara dos Deputados acaba de votar um projeto que não dá votos. Afinal, a reforma da previdência significa que as pessoas terão que trabalhar mais, desembolsar mais e receber menos.
Vista de longe, a aprovação da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que muda sobremaneira as aposentadorias dos brasileiros não seria recomendada pela lógica impulsionadora da política – a dos votos. Mesmo assim, ela foi aprovada por maioria expressiva pelos deputados.
Na prática, de acordo com o Datafolha, o Brasil está dividido. Metade aprova, metade é contra.
“Não é um embate que todos nós gostaríamos de fazer”, ponderou o senador Davi Alcolumbre, presidente da Câmara Alta. “Porque não é um assunto popular”.
O senador certamente expressou o pensamento da maioria do Congresso Nacional. Como o de um ex-parlamentar que transitou durante muito tempo no Parlamento.
Mudar as regras para aposentadorias é “como uma quimioterapia, mas necessária para que o corpo possa sobreviver”, comparou o presidente Jair Bolsonaro, por 27 anos deputado federal. Bom de voto, ele avalia que a reforma “trará algum prejuízo político” aos parlamentares. Prejuízo eleitoral, ele quis dizer.
Reforma malquista
Não faltam argumentos para aprovar a reforma das aposentadorias. Mas nenhum deles ameniza a principal consequência da emenda, que é a de tornar mais distante o sonho do ócio (bem) remunerado.
Uma das conclusões históricas, extraídas de outras grandes votações, indicaria que a pressão partiu do Executivo. Na votação da reforma, porém, o mandatário foi ambíguo.
Bolsonaro, de maneira incomum, jogou aos congressistas a tarefa de descascar o abacaxi. Disse que sua tarefa resumia-se a mandar o projeto. Numa lógica canhestra, sustentou que a aprovação era problema do Legislativo.
No meio do jogo “agora é com vocês, não tenho mais nada com isto”, o presidente da República chegou a incursionar pela política tradicional. Liberou emendas parlamentares e nomeou aliados para cargos federais.
Seu jogo dúbio levou a Câmara a assumir a paternidade da reforma malquista.
Trabalhar até morrer
Fortes pressões populares também levam o Parlamento a aprovar mudanças no ordenamento legal brasiliano. Não dá pra dizer que foi este o caso.
Como se viu, o País ficou dividido. Houve protestos esporádicos apoiando a reforma, mas geralmente gestados em cima de outras bandeiras, como o apoio à Bolsonaro ou à Lava-Jato de Sergio Moro.
Também houve lobby contrário. Corporações de servidores e centrais sindicais se organizaram, como sempre, para evitar o fim de seus extensos privilégios.
Compreensível. Não se imaginaria trabalhadores cercando o Congresso Nacional bradando: “queremos trabalhar por mais tempo”, “não quero me aposentar tão cedo”, “basta um salário mínimo na velhice”.
Seria, então, a reforma o desejo das elites?
E se a recessão não passar
Economistas (tirante a maioria dos da chamada esquerda), parte majoritária da mídia e empresários juntaram-se na defesa da inevitabilidade da mudança nas pensões. Foi esta pressão decisiva? Não há dúvida que sim.
Formou-se, no Brasil, uma convicção de que, ou o Brasil acabava com a previdência como ela (ainda) existe hoje, ou os gastos crescentes das aposentadorias asfixiariam o orçamento da União. Iniciada com sistemática durante a gestão Michel Temer, a campanha, que apontava como falido nosso sistema previdenciário, deu certo.
O ponto sem volta foi quando percebeu-se que, sem a reforma, o Brasil patinaria pelo menos até às próximas eleições presidenciais. A consequência da rejeição à reforma seria a estagnação econômica.
À maioria parlamentar não interessava o carimbo de agente da recessão, que se tornou crônica. Sem as mudanças, persistiríamos no desemprego e na ausência de investimento impulsionador do crescimento.
O Brasil no atoleiro recessivo por mais três anos e meio era (é) o horizonte.
Neste ponto, muitos acreditaram que não há como o Brasil avançar sem reduzir o valor das pensões. Outros, mesmo sem esta convicção, votaram na carta das maldades, pois não queriam pagar pra ver o pior.
Onde a democracia pulsa
Então, está explicado, o Parlamento cedeu a frios economistas de direita, à mídia conservadora, a empresários desnaturados? Clássica e obsoleta explicação da chamada esquerda.
A aprovação da reforma da previdência foi a conjugação de elementos diversos. A maturidade da argumentação, que vem se acumulando desde o governo de Fernando Henrique, é uma delas.
Os parlamentares brasileiros não inventaram a roda. Países mundo afora já experimentaram a mesma trajetória, com as mesmas e naturais reações opostas.
Se a população estivesse majoritariamente contrária à reforma e as manifestações tivessem sido virulentas, como as que inflamaram países da Europa, talvez o resultado final tivesse sido desidratado. O Brasil, porém, está dividido.
Também decisiva, certamente, foi a iniciativa do capitão-mor. Não tivesse ele bancado a reforma, apesar dos sinais dúbios, dificilmente a Câmara dos Deputados a teria aprovado.
Nossa tendência tupiniquim é achar que nada de bom sai do Parlamento brasileiro. E, quando sai, o mérito não pertence aos parlamentares.
Visto o longo histórico de leis modernizadoras – desde o fim do divórcio até à legislação que amparou a Lava-Jato -, nada mais inverídico. Cacoetes de jornalistas e cientistas políticos.
A Câmara dos Deputados foi o estuário da pressão social e do debate exaustivo e maduro. Só saberemos do grau do acerto das duras medidas aprovadas pelos deputados federais – resta o voto dos senadores – daqui a alguns anos.
Mas, o que se viu até aqui demonstra, mais uma vez, que nenhum outro poder é tão permeável à difusa e contraditória vontade da sociedade brasiliana. Dúvidas e contradições populares expressam-se nos tapetes verdes e azuis do Congresso Nacional como em nenhum outro poder da República.
Executivo, Judiciário e Ministério Público são poderes essenciais à saúde republicana. Mas o coração da democracia bate no Parlamento.