O presidente Lula, que governa o país pela terceira vez, tem demonstrado estranha dificuldade em lidar com crises absolutamente evitáveis. Para alguém com experiência, descrito por todos os analistas de política como um player habilidoso e que entende como o jogo político funciona nos bastidores, é de se estranhar que Lula cometa deslizes grotescos assim.
Não faltaram, no ano passado, após as eleições terminarem, análises políticas que apontavam as dificuldades estruturais que Lula já enfrentaria inevitavelmente: a nova dinâmica legislativa, com maior autonomia dos deputados e senadores após o estabelecimento da impositividade das emendas, desde 2015; o fortalecimento das bancadas de direita e centro-direita no Congresso Nacional; a polarização que divide o país; a dificuldade de agradar todos os setores da tal ‘frente ampla’ que foi fator importante para a vitória do presidente etc.
Porém, as manchetes dos principais jornais do país dão destaque não apenas a todos esses problemas que já estavam mapeados, mas também àqueles que poderiam ser evitados. Nesta semana, em vídeo publicado pela CNN, o então ministro do GSI, general Gonçalves Dias, aparece no Palácio do Planalto com atitudes amigáveis aos invasores do 8 de janeiro. Lula, em respeito a uma ‘antiga amizade’, optou por escolher Dias para a função. Resultado: o governo, que poderia obter vitórias políticas importantes com a tragédia do 8 de janeiro, agora vira vítima da narrativa da oposição a Lula, passando para a defensiva após o vazamento. Agora, o PT brigará para assumir os postos de controle da CPMI do 8 de janeiro, que inevitavelmente será instalada em breve. Ainda que consigam a presidência e a relatoria da Comissão, a oposição já tem o que precisava: um fato concreto para martelar o governo, gerando desgaste político e eleitoral. Crise ‘gratuita’, causada por um dos principais membros do coração do governo Lula, o ex-ministro G. Dias.
Além disso, Lula realizou viagem recente à China, com comitiva composta por políticos aliados e grandes empresários do país. Assinou importantes acordos comerciais com o país asiático, mas que ficaram ofuscados pela péssima repercussão de suas falas sobre a guerra na Ucrânia. Dizer que o país é tão culpado quanto a Rússia pela guerra é culpar a vítima pelo crime. A invasão russa, mesmo com toda a sua complexidade geopolítica que a causou e que sustenta tensões permanentes no leste europeu, é um atentado à soberania de um país vizinho, tema caríssimo à diplomacia internacional.
Para intensificar a repercussão negativa, Lula recebeu no Brasil, no dia seguinte após seu retorno da viagem à China, o chanceler russo, Sergey Lavrov. Lavrov não era recebido por nenhum país desde o início do conflito, por conta das retaliações internacionais à guerra. Nessa primeira viagem, foi aceito por 4 países. Além do Brasil, Lavrov passou também por Cuba, Venezuela e Nicarágua. A seleção de países diz por si só. Vexame para o Brasil perante seus aliados. Em recente encontro do G20 na Índia, em uma fala para diplomatas de diversos países, Lavrov foi alvo de risadas coletivas, após afirmar que a Rússia havia apenas respondido aos ataques de uma guerra que havia sido lançada contra eles pela Ucrânia.
A Rússia é um parceiro estratégico para o Brasil, não há dúvida disso. É o principal exportador, por exemplo, de fertilizantes para o país em que o agronegócio é a principal atividade que compõe o PIB. Portanto, romper relações com os russos não está nos planos de nenhum político sensato. O que Lula fez, porém, era evitável. Suas falas soaram irresponsáveis e despreparadas, já que o próprio presidente voltou atrás dias depois em um almoço com o presidente da Romênia, em Brasília, no qual afirmou que ‘seu governo condena a invasão’, e em um documento assinado de forma conjunta com o presidente português. Porém, o estrago já estava feito, com repercussões mundiais intensas. As relações comerciais russas e brasileiras já estavam consolidadas. Desde Bolsonaro, o Brasil adotou postura de não aplicar sanção aos russos e, com isso, o fluxo comercial estava garantido. Outra crise gratuita para o governo, por descuido de discurso presidencial. Impactos enormes, em um governo que não possui capital político sobrando para ‘gastar’ dessa forma.
Se Lula pretendia posicionar o Brasil e ele próprio como pivô da solução para a guerra e para a paz, o resultado de suas falas apontam para o caminho oposto. Japão, União Europeia e Estados Unidos, por exemplo, condenaram abertamente os posicionamentos do presidente brasileiro. A perda da posição de neutralidade, característica tradicional da diplomacia brasileira, é uma conquista importante para Putin, que não havia recebido apoio assim desde o começo do conflito. Lavrov, ao afirmar que o posicionamento do Brasil é semelhante aos interesses russos, já diz tudo.
Em visita a Portugal, Lula faria o primeiro discurso de chefes de Estado estrangeiros no parlamento português em cerimônia comemorativa da Revolução dos Cravos, que encerrou a ditadura militar portuguesa. Por conta da repercussão negativa de suas falas sobre a Ucrânia, Lula foi vetado após acordo entre lideranças partidárias e participará de uma sessão solene de boas-vindas, fora do palanque principal das comemorações da Revolução dos Cravos.
Internamente, na Câmara, Lula ainda patina. Sua coalizão de deputados ainda não garante maioria para votações importantes para o seu governo. Parte disso se deve a mudanças na dinâmica política. Em seus dois primeiros governos, Lula tinha uma base mais sólida, em que sabia com quantos deputados podia contar. Hoje, com a maior autonomia do Congresso Nacional perante o Executivo, o governo terá de contar deputados em bases fluídas. A depender do tema e da repercussão política dos projetos votados, o número de apoiadores aumenta ou diminui de votação em votação.
No Senado Federal, sua situação é um pouco mais tranquila. A eleição de Rodrigo Pacheco (PSD-MG) trouxe certo conforto ao governo, que o apoiou. Pacheco lida bem com a maioria dos senadores e, com isso, o governo possui maior margem na Casa Alta. Ainda assim, Lula possui adversários ali que não darão trégua, como General Mourão, Sérgio Moro, Teresa Cristina, Marcos Pontes etc. Portanto, suas escorregadas têm de cessar, caso queira manter o apoio dos senadores vivo. As falas de Lula sobre ser ‘armação do Moro’ a operação da Polícia Federal que desmantelou um esquema do PCC é outra crise gratuita. Moro, que não estava bem-posicionado na mídia, ganhou espaço após a repercussão da fala presidencial. Lula, se quiser estruturar uma base parlamentar sólida, precisa interromper as crises geradas por suas falas espontâneas.
Soma-se aos problemas citados algumas outras falas, dentre várias derrapadas, como a que envolvia pessoas obesas, portadores de deficiências e o desgaste com os ‘gamers’ após associar a violência nas escolas com os jogos. Nesse sentido, vê-se que os desafios são vários. Lula foi eleito com menos de 2% dos votos a mais que Jair Bolsonaro. Em um país que permanece dividido e radicalizado, Lula não tem espaço para manobras arriscadas. Prometeu entregar o país pacificado e unido, mas tem, ele próprio, estimulado a manutenção da divisão. A própria dinâmica estrutural da política já é repleta de dificuldades. O governo, portanto, não pode continuar criando dificuldades para si e achar que o resultado será positivo. A luz de alerta já devia ter sido acessa há tempo. Lula, que está na elite da vida política nacional desde a década de 1980 e presidiu o país por 8 anos, conhece o caminho esburacado que terá pela frente. O que impressiona é ele se jogar nos buracos já mapeados.