Desafios na representação política – Análise

Não são novos os desafios de governantes para ampliar conexões com a população que governam. Normalmente, iniciam-se governos com taxas de aprovação acima dos valores vistos para os meses subsequentes, período em que muitas expectativas se tornam ceticismos e o ceticismo torna-se decepção. É parte do jogo, dada a complexidade das teias da política profissional, que derruba qualquer conjunto de promessas de palanque com o peso que a realidade orçamentária e de coalizão partidária impõem.

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Para alcançar feitos, é necessário abrir mão de outros. É, acima de tudo, uma aposta, em acertar temas que repercutem no dia a dia das pessoas e impactem positivamente suas vidas. Há espaço para a Virtú, a capacidade do governante.

Da mesma maneira, é parte do jogo também a pressão pela aprovação dos projetos e de cumprimento de promessas pelos que não se sentem representados. O problema aumenta quando as fatias deste grupo são enormes, como é o caso do Brasil de hoje.

O desempenho de governantes está, como mostram pesquisas em diversos países, cada vez mais descolada do desempenho da economia. Fatores como a pauta de costumes estão cada vez mais relevantes no debate. Eleições modernas, marcadas por fortes votações por rejeição, em que se escolhe um candidato não por adesão à sua pauta, mas por rejeição a outro, impactam enormemente estes números.

Começa-se o governo em um período reduzido de ‘lua de mel’, em que as expectativas são grandes. O ceticismo já é rei em boa parte do eleitorado, que está dividido. Com o passar do tempo, de promessas não cumpridas e muito gogó, amplia-se a decepção.

Há uma incapacidade sistêmica de governos eleitos em manter contato e representar, latu sensu, suas bases de apoio, para dar respostas às demandas que venham delas. Gasta-se muita energia e capital político em responder às crises subsequentes, mas não é dada a devida atenção aos sinais prévios, que transbordam.

Além disso, no Brasil, o ‘sistema’ e a má qualidade do homem público são fatais. O primeiro, permeado pela distorção do interesse público e privado, corrupção a rodo e falta de qualidade de debate público, não dá espaço para boas cabeças que entram no jogo. O segundo fator é ainda pior, pois não adiantaria apenas uma renovação completa dos atores, a classe política é reflexo de nossa população, é necessária uma renovação plena do ideal da Res Publica, da coisa pública. Sociedades avançadas são aquelas que dão real importância ao capital humano.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Combate na política

Por isso, e por tanto mais, cidadãos não se sentem mais representados. Os partidos são, em termos gerais, empresas. Seus interesses privados estão expostos à luz do dia. Com um fundão eleitoral turbinado, não há preocupação alguma com a real conexão com as bases. Por isso, cada vez mais outsiders ganham espaço, apresentando propostas mirabolantes, mas que criam expectativas no eleitor. O político ‘tradicional’ perde cada vez mais credibilidade. E fazem um esforço enorme para isso, vale lembrar.

A política, é importante lembrar, nasce justamente da necessidade de transferência da arena física, do combate pela força, para a arena da discussão de ideias. Se antes, em termos abstratos, vencia o braço mais forte com espada na mão, a política retira a batalha do campo físico para o campo das ideias. Há força, influência e poder no jogo, evidentemente. Mas a existência da tribuna, no lugar da espada, já poupou muito sangue de ser derramado. A pena deve ser mais forte que a espada. É uma questão civilizatória.

Por essa e tantas outras razões, partidos políticos e governos deveriam prestar atenção em alguns fatores, que alteram características do jogo político de tempos modernos. A identificação popular de hoje se dá com pessoas, não mais com partidos. A profissionalização da política, como já muito trabalhado pela teoria política, descola os interesses das bases dos interesses dos detentores dos cargos, que passam a defender e dedicar-se à essa manutenção de poder. O excesso de burocratização e corpulência estatal são vistos como empecilhos ao desenvolvimento. A agenda de desburocratização é fundamental para tornar mais pessoas capazes de buscar seu sustento.

Além disso, já é pauta batida o fato de que a arrecadação brasileira é enorme, pagamos impostos como os países nórdicos, mas em troca recebemos serviços péssimos, como países subdesenvolvidos. O cenário visto hoje é de uma busca insana e incessante por mais receita, mais arrecadação. E nem sequer cogita-se reduzir gastos. Quem entende do riscado sabe que o aumento de receita não resulta em melhores serviços. Resulta em pagamento de despesa, em pagamento de emendas que muitas vezes desaparecem misteriosamente, em pagamento de folha salarial.

Foto: Divulgação/EBC

 

Governo central incapaz

Em Brasília, costuma-se tratar frequentemente o país como algo único, padrão, uma ‘média’, sendo que o Brasil real é feito por ‘Brasis’, dizia Darcy Ribeiro. As complexidades são infinitas. Um governo central é incapaz, quase que por definição, de solucionar essa infinidade. A criatividade das próprias pessoas é importantíssima, mas para isso, precisam ter dinheiro. O acesso aos dados da ‘microeconomia’ pelo governo central é infinitamente menor do que o mundo real ao redor.

Agora, indo do geral para o específico, Lula se deparou novamente com um baita problema nesta semana. Ao realizarem a comemoração do 1 de maio, deparou-se com cerca de 1600 pessoas apenas para prestigiar o evento. Lula se dá conta de que perdeu as ruas. O governo não está falando a língua das pessoas. O descolamento é enorme e notável. E sem elas, não há pressão suficiente para avançar com qualquer pauta. As ruas são definidoras em agendas, das mais comuns às mais tensas, como processos de impeachment. É sempre uma conjuntura de fatores, mas sem elas, não há resultado.

Entre as inúmeras razões do descolamento do governo com suas bases, destaco um exemplo. A proposta do governo de regular o trabalho de motoristas por aplicativos deixa claro este aspecto. O governo, paralisado no tempo, entende que maior regulação é maior qualidade de trabalho. O que não esperavam é que, ao sair dos Palácios e olhar para as ruas, se deparariam com a categoria em peso se mobilizando contrariamente à regulação. Os motoristas entendem que seus ganhos, já minguados, serão prejudicados com contribuições ainda maiores. O verdadeiro vencedor nesta mudança seria o próprio governo, com aumento de arrecadação.  As corridas ficam mais caras, os motoristas ganham menos.

É urgente que Lula e seus companheiros olhem para baixo. Lula precisa de auxiliares que lhe alertem da realidade. Vive em um mundo que beira a fantasia, repleto de ‘Conselheiros Acácio’, do grande Eça de Queiroz. Porém, o rei está nu. A popularidade cai, enquanto os números da economia estão estáveis. Não é suficiente. A narrativa do governo não está ‘colando’ como gostariam. A oposição ganha força. Viagens internacionais para consolidação de alianças e fluxos comerciais são fundamentais, mas em exagero, passam a ser vista como curtição. Bajulação de regimes autoritários não ajudam em nada a narrativa da defesa da democracia. Aumento de arrecadação não ajuda em nada na melhoria da prestação de serviços públicos. A revisão dos gastos é fundamental.

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos…” Fernando Pessoa.

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