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BRICS serve para um único país consolidar sua liderança. E não é o Brasil

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Como organização que carrega um propósito comum, o BRICS – sigla para Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – luta desesperadamente para fazer sentido e ter alguma relevância. Diante de um desejo de “criar uma nova ordem global”, é demasiado irônico que a existência do grupo tenha partido de um acrônimo de Jim O’Neill, ex-Goldman Sachs, um dos símbolos históricos daquilo que o BRICS quer detonar.

Mesmo com a adição de novos membros, o BRICS permanecerão em dificuldades para obter a relevância que desejam ter. Nada une seus membros a não ser o desejo de encontrar algo que os caracterize como uma formação coesa com peso global em decisões geopolíticas.

Dada a atual conjuntura geopolítica, com as tensões entre Estados Unidos e China e a guerra na Ucrânia, o BRICS ganha um aspecto interessante, mas que passa bem longe da narrativa pública que seus membros dão ao bloco. Cada um tem uma razão e um objetivo importante para alcançar dentro do grupo. O problema é que nenhuma dessas razões é suficiente para tornar o bloco em algo que se harmonize em uníssono, que justifique toda a narrativa de “nova ordem global”.

A China sabe que quem manda no grupo é ela. Antes da turbinada Rota da Seda, o BRICS tinha uma importância conjuntural para o país. O então presidente chinês Hu Jintao enxergou uma oportunidade de catapultar a influência global do gigante asiático e ainda manter próxima seu principal rival regional, a Índia.

Xi Jinping, atual presidente, diluiu consideravelmente o propósito do grupo com a expansão da Rota da Seda e dos financiamentos diretos que fez a países em desenvolvimento. Se a ideia original era usar o BRICS para isso, Xi decidiu por algo mais pragmático.

No entanto, a fim de manter vivos os objetivos dos outros membros, o ar de relevância para o BRICS deve sempre ser dado pela China. Num ambiente onde as tensões geopolíticas com os EUA se aprofundam mais e mais, o BRICS ajuda a China a coordenar seus interesses mais facilmente em relação a Brasil e Rússia, além de ter um foro para vigiar a Índia de perto.

Potências dependentes

Brasil e Rússia são potências médias dependentes da China. O Brasil é comercialmente dependente, a ponto das decisões tomadas em Pequim sobre o agro brasileiro serem mais importantes e decisivas do que as tomadas em Brasília. A tradução dessa dependência comercial em influência geopolítica ocorre pelo BRICS, pois lá a China acena sempre com a mesma oferenda ao Brasil – apoio para se tornar membro permanente do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), algo que faz recorrentemente desde 2004, e, em troca, recebe um posicionamento de neutro para negativo do Brasil em relação aos EUA.

A Rússia é economicamente dependente da China. Essa dependência se acentuou com o início da Guerra da Ucrânia. Para Xi Jinping, Putin ser o vilão do mundo é excelente, pois a existência de um Putin beligerante dilui a atenção concentrada em Xi. Não só isso, com a guerra na Ucrânia e as sanções aplicadas contra a Rússia, a China ganhou um fluxo contínuo de gás natural e importações de alumínio e lítio, entre outras mercadorias a preço de banana. Se Putin precisa de uma plataforma para falar, o BRICS se torna local essencial. Para a China, é mais uma incrível barganha.

A entrada de Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Argentina, Egito, Irã e Etiópia trazem outras vitórias interessantes para a China no âmbito geopolítico. Se antes o BRICS era irrelevante como grupo, hoje ele se torna de grande relevância para a China e para os párias do mundo, como Rússia e Irã.

Jogada “idiota”

Desde a metade do governo de Donald Trump, a relação dos Estados Unidos com os países do Médio Oriente se deteriorou. A bobagem sem tamanho de Trump, de retirar os EUA do acordo P5+1 com o Irã, não só se mostrou como uma das jogadas mais idiotas na geopolítica global dos últimos anos como acabou por dar de bandeja à China uma fonte de forte influência naquela região.

O Irã havia segurado o avanço do seu programa nuclear em troca do fim de algumas sanções. Com o desmantelamento do acordo, a China tornou-se um parceiro-chave do Irã, oferecendo linhas de crédito por meio das quais o pagamento é feito regularmente com barris de petróleo, além de revitalizar economicamente o regime do Aiatolá. Para o Irã, a entrada no BRICS representa sua chance de ouro de ganhar um palco amigável para dizer o que pensa e defender suas ações domésticas.

Com a Arábia Saudita, a situação é similar. A diferença é que os sauditas não possuem problemas econômicos. O vácuo deixado pelos EUA na relação com os sauditas foi rapidamente ocupado pelos chineses. As pressões ocidentais contra violações a direitos humanos acabam por unir Arábia Saudita e China numa narrativa uníssona de contestação.

Em cima disso, a China vem colaborando com os sauditas em projetos de diversificação econômica, incluindo exploração de reservas de urânio. Buscando também um microfone mais amigável, a entrada no BRICS vem a calhar para os sauditas.

Cortina de fumaça

O ingresso da Argentina é uma excelente cortina de fumaça para o que se passa no país. No dia do anúncio, supermercados e lojas em Buenos Aires eram saqueados por conta do caos econômico acentuado nas últimas semanas. Com a casa pegando fogo, convite para fazer parte de uma organização internacional com colegas ricos é um que não se nega. Javier Miles, candidato da direita, e Patricia Bullrich, candidata da centro-direita, já deixaram claro que não acham uma boa ideia esse ingresso no BRICS. Com Sergio Massa próximo de uma derrota, resta ver como a Argentina se portará nesse clube.

Para os outros membros, a oportunidade de ter encontros bilaterais uma vez ao ano com Xi Jinping, Narendra Modi e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já é uma aventura. Esse, na verdade, tem sido o grande valor do BRICS nos últimos anos: a possibilidade de ter reuniões bilaterais de alto nível, além daquelas da ONU. Como um grupo de networking, não há como negar que o BRICS se torna muito interessante.

Dólar versus yuan

Um ponto-chave levantado nessa última reunião não deve passar em branco. O movimento chinês para que operações no comércio internacional deixem de depender do dólar e passem a utilizar o yuan é genial. Principalmente porque, entre os novos e velhos membros, existem países que não estão bem com dólar ou estão envoltos em sanções. A criação de um ecossistema paralelo às sanções, em que o yuan funcionaria como moeda base, aparece como a grande sacada para os chineses.

Os outros membros celebram o fim da dependência do dólar para se jogar em uma outra com o yuan. A ideia é perfeita, mas, na prática, isso não acontecerá de uma forma tão rápida. Para Rússia, Irã e Etiópia, usar yuans ao invés de dólares é a única saída. No caso da Argentina, o país até prefere o dólar, mas na escassez dele, o yuan vira uma oportunidade.

A Índia não deve aderir a esse plano de yuanização comercial tão facilmente assim, independente da narrativa de Modi. As complexas burocracias também servem para frear ideias radicais, mesmo enquanto seus presidentes falam a favor delas.

A Índia está levando o BRICS sem entusiasmo nem preocupação. Não é contra sua expansão, não se compromete a nada pesado, mantém um olho na China, uma relação no âmbito militar com os russos e uma crescente cooperação cibernética e farmacêutica com os EUA. Jogam qualquer coisa e com todos para manter sua independência. No meio ao encontro do bloco, ainda tirou onda com o pouso na Lua da missão Chandrayaan-3.

Ponto de vista

Tudo o que está sendo proposto na cúpula do BRICS – substituição do dólar pelo yuan, linhas de créditos paralelas às tradicionais do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, além da “nova ordem mundial – já está sendo feito de uma forma ou de outra no âmbito individual e liderado pela China. Pequim replica políticas próprias, já em execução, como se fossem iniciativas do grupo. Isso é inteligente, pois empresta um pouco de protagonismo a um grupo que mais se assemelha pelos inimigos que enfrenta do que pelos objetivos comuns. Isso funciona enquanto a China não muda sua rota.

Yuanizacao? Já está em curso, independente dos Brics. A Rússia já lida com yuan, o comércio entre Irã e China já usa o yuan como referência e os acordos de linhas de crédito entre China e Argentina já incluem transações em yuan, entre outras moedas.

Oferta de crédito? A China já faz via seus bancos regionais por meio da Rota da Seda. As ofertas de crédito individualizadas pela China nunca serão relegadas a um segundo plano em comparação com o que o Banco dos Brics pode oferecer. Assim, o New Development Bank (NDB, o Banco dos BRICS) segue sendo uma linha auxiliar de oferta de crédito que a China gere e executa.

O BRICS não será caminho para uma revisão do Conselho de Segurança da ONU (por isso é fácil prometer e colocar isso como uma premissa inicial) nem será o catalizador para uma mudança da ordem mundial. Se isso ocorrer, será pelo que a China faz individualmente e não por meio de uma aliança com a Rússia, Brasil e outros países de potência mediana.

O grande ponto de interesse pelo que vem ocorrendo dentro dos BRICS gira em torno do objetivo chinês de consolidação da sua liderança. A Índia é o único país verdadeiramente independente entre seus velhos e novos membros, enquanto os outros verão suas doses de dependência em relação à China se acentuarem. Se isso é bom ou ruim, depende do ponto de vista.

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