A implementação de uma política weberiana atrelada a um conjunto de mudanças na burocracia do Estado é o caminho mais viável, e não menos complexo, para a transformação de uma sociedade. A expectativa e a confiança exagerada na liderança única, na forma de um Presidente ou Primeiro-Ministro, cria a ilusão de que mudanças possam ocorrer a partir de características pessoais, convicções e desejos dessa única pessoa e da equipe por ela escolhida para compor um governo.
Esse equívoco é a principal forma de frustração que uma sociedade desenvolve em relação ao governo. Frustração às vezes aplacada por eventuais ciclos de bonança econômica, onde os fatores, advindos desse indivíduo no papel de liderança, são mais circunstanciais do que decisivos. O papel da burocracia, como garantidora do funcionamento da máquina pública e da proximidade na relação entre Estado e Sociedade, é crítico e muitas vezes ignorado. Essa mesma burocracia age como um ente desassociado da liderança eleita, já que a noção de tempo e prioridades são muito distintas entre os dois.
A estabilidade da burocracia cria uma nova categoria de noção temporal que não se encaixa com a cronologia de mandato do eleito, nem com os anseios de mudanças urgentes da sociedade. Por não existir um “representante da burocracia” e pelo fato de a sociedade enxergar a liderança democrática em uma pessoa (ou em um grupo restrito de pessoas), cria-se a tendência de ignorar o poder burocrático, sem nem tentar estabelecer um canal de comunicação, crítica ou pressão que possa tentar modificar a lógica de prioridades e o senso de urgência dessa burocracia.
As vitórias e benfeitorias obtidas via meio burocrático tendem a se acumular na conta do governante eleito, mesmo que projetos bem executados sejam anteriores à sua chegada ou independentes de sua intervenção. Ao mesmo tempo, a morosidade e os equívocos também tendem a recair na conta do governante eleito. A estabilidade coletiva e a ausência de uma personificação faz da burocracia o ente mais poderoso de uma democracia, pois o tempo está a seu favor e seus próprios mecanismos complexos servem como justificativas ideais para que algo não ocorra ou não seja entregue de forma satisfatória à sociedade.
“As vitórias e benfeitorias obtidas via meio burocrático tendem a se acumular na conta do governante eleito, mesmo que projetos bem executados sejam anteriores à sua chegada ou independentes de sua intervenção.”
Naturalmente, a “ponta” da burocracia mais próxima do Executivo tende a ser receptora e produtora de ideias oriundas dos administradores temporários em cada administração. Já as questões “normais “, do dia a dia institucional, não recebem a atenção necessária dos administradores temporários e ficam totalmente a mercê dos misteriosos mecanismos sobre os quais os temporários e os eleitos possuem pouco poder de ação. As iniciativas que partem dos temporários e que agradam à burocracia podem ganhar alguma atração, mas isso ocorre independente da vontade da administração temporária. Ao mesmo tempo, iniciativas que partem dos administradores temporários e que são rejeitadas, são derrotadas pelo tempo. A ausência de urgência e a complexidade do processo burocrático servem de aparato para levar uma ideia à morte.
O filósofo alemão Max Weber criou o conceito de três tipos de autoridade dentro de uma democracia, ideias que podem nos auxiliar a buscar um amadurecimento democrático, de tal forma a atender mais satisfatoriamente aos anseios da sociedade. Cada um dos tipos de autoridade descritos por Weber nos oferece um insight sobre a nossa própria condição como democracia e potenciais alternativas (com ajustes) para uma melhora.
O primeiro desses tipos de autoridade é a autoridade carismática. A figura de um líder carismático, com poder de convencimento coletivo e onde a sociedade deposita nele — e não na estrutura institucional — a capacidade de mudança desejada. Esse carisma gera um excesso de confiança de parte da população sobre ele, e a expectativa de que ele pode, por conta própria, guiar a nação em direção ao progresso é alta e quase cega. A expectativa messiânica geralmente falha, pois, à medida que o próprio líder se convence da magnitude de influência que tem, sua relação com as instituições começam a falhar e, caso elas se coloquem em rota de colisão com seus pensamentos, ele afasta a sociedade das instituições e a atrai para si. Em um país institucional e burocraticamente forte, esse tipo de liderança tem dificuldades em entregar resultados e aposta na promessa dos resultados ou nas justificativas, terceirizadas, para explicar por que os resultados não foram obtidos.
O segundo tipo de autoridade descrito por Weber é o da liderança tradicional. Pertencendo aos grupos que lhe transferem a legitimidade , o líder tende a servir primeiro a esses, ao invés de se voltar para as instituições e para a sociedade. Os privilégios que podem ser oferecidos a um determinado grupo tradicional podem aumentar quando a legitimidade e o poder de representatividade dessa liderança diminui. Isso inverte valores e cria uma hierarquia de prioridades onde a sociedade não é a primeira da fila. Esse perfil de liderança não busca confrontação com a burocracia e se ancora na própria influência do grupo que o auxiliou a chegar ao poder para poder influenciar o funcionamento burocrático.
“Os privilégios que podem ser oferecidos a um determinado grupo tradicional podem aumentar quando a legitimidade e o poder de representatividade dessa liderança diminui.”
O terceiro tipo de autoridade descrito por Weber pode ser visto por muitos como solução, mas isso demanda uma sociedade madura e uma reforma no funcionamento burocrático do Estado. A liderança racional-legal se ancora totalmente no funcionamento das leis e das regulações de um Estado. Essa liderança serve como um porta-voz das leis pré-estabelecidas, interage bem com as instituições, observa a Constituição e busca aperfeiçoá-la de forma a que seu funcionamento seja o mais eficiente possível.
Naturalmente, em uma sociedade de baixo nível de educação democrática (principalmente das elites econômicas), a insatisfação perante algumas leis se torna insatisfação contra o governante e as instituições. Perante a lei, o senso individualista não observa o benefício coletivo, mas apenas circunstancial, ou seja em situações onde um determinado indivíduo se sente prejudicado. Além disso, a existência de grupos de pressão altamente organizados faz com que esses grupos busquem flexibilizações nas leis e nas regras a fim de beneficiar a si próprios.
“Perante a lei, o senso individualista não observa o benefício coletivo, mas apenas circunstancial, ou seja em situações onde um determinado indivíduo se sente prejudicado.”
O governante que administra pela via racional-legal necessita da compreensão popular de que esse modelo é o que melhor atende às necessidades da sociedade como um todo. Há, no entanto, um problema fundamental nesse modelo. O fato de se ancorar nas leis e nas regras para garantir o bom funcionamento institucional, invariavelmente fortalece o poder das burocracias, podendo se criar uma situação em que estado burocrático suplanta o estado democrático.
Para que o modelo racional-legal seja bem executado, uma reforma burocrática deve ocorrer, buscando: transparência em cada etapa das decisões burocráticas, nos níveis federal, estadual e municipal; adequação do tempo, no sentido de que as expectativas da sociedade precisam ser levadas em consideração no processo de avanço burocrático; instituir prazos máximos para que certos processos ocorram, de forma universal, dentro de um Estado, é imperativo para a adequação dessas expectativas (flexibilidade maior para contratar e demitir funcionários públicos gera um senso de propósito maior na execução individual da função, pois a qualidade e eficiência do serviço executado pode ser mensurado, recompensado e punido); centralização de funções e processos burocráticos ambíguos e eliminação de processos contraditórios; aproximação entre burocracia e sociedade, para que os anseios e cobranças sejam vias de mão dupla facilmente identificáveis.
Isso reforça a necessidade de um processo de melhoria na educação pública, no senso de coletividade, na compreensão das nuances e ramificações da democracia e no desejo das elites econômica, social, intelectual e cultural em buscar o aprofundamento, em se sentir parte de um país e não parte de um grupo específico dentro de um país.
O processo de desenvolvimento democrático que nos levará ao desenvolvimento econômico e social é longo e não podemos pular etapas, como é habitualmente tentado por países que apostam em lideranças carismáticas em momentos de crise. A estabilidade do sucesso e do progresso demanda uma preparação coletiva de médio a longo prazo. Os sucessos ocasionais e esporádicos ocorrem quando fatores alheios às ações de um governo e de um país potencializam decisões e, na conjunção dos fatores, geram um ambiente de prosperidade que não se mostra sustentável a médio prazo.
A “política weberiana” é um termo adaptado para esse texto, no sentido de buscar o desejo coletivo pela liderança racional-legal, como desejo coletivo e respeito às instituições e às suas regras. O fator de risco seria o excesso de poder depositado em uma burocracia que tem pouco a perder caso não se engaje nesse processo de mudança. Um processo educativo de apreciação democrática, de racionalidade e de modernização das leis é o passo inicial, juntamente com a participação decisiva dos núcleos formadores de opinião, levando esses núcleos a abraçarem uma causa nacional. A partir daí, a adaptação da burocracia para um ambiente mais competitivo, sensível às necessidades da sociedade — e com senso de urgência — torna-se o passo seguinte antes de criarmos uma estrutura minimamente possível para iniciar um ambiente de estabilidade de políticas públicas que gerem uma sustentabilidade de crescimento e prosperidade.
Publicado em 14 de julho de 2020 no Correio Braziliense