Por Antônio Augusto de Queiroz* e Luiz Alberto dos Santos**
A expressão “pós-verdade”, embora menos conhecida que sua principal ferramenta de disseminação, as “fake news”, já circula com certa frequência em debates ou em veículos de comunicação, porém pouco gente sabe exatamente o que significa. Com o propósito de explicar seu significado e alcance, fomos buscar apoio, entre outros, no texto seminal “Além da desinformação: entendendo e lidando com a era “pós-verdade”, de autoria de pesquisadores estrangeiros[1], que estudaram em profundidade esse fenômeno que afronta a racionalidade e assombra a ciência. O artigo dos pesquisadores explora a crescente abundância de desinformações na esfera pública, como ela influencia as pessoas e como combatê-la.
O mundo da pós-verdade, segundo os pesquisadores, surgiu como resultado de megatendências sociais, como o declínio do capital social, a crescente desigualdade econômica, o aumento da polarização, a diminuição da confiança na ciência e um cenário cada vez mais fracionado da mídia. De um lado, tem como fundamento a negação da ciência e o apelo às emoções e às crenças, em detrimento da razão e da objetividade. E, de outro, utiliza como meio de disseminação as novas tecnológicas digitais, especialmente por intermeio das redes sociais da internet, manipulando dados, informações, fatos, acontecimentos e argumentos em reforço das ideias que patrocina.
Em estudo publicado em março de 2018 pela Revista Science, Soroush Vosoughi, Deb Roy e Sinan Aral demonstraram, com base em dados de 126 mil postagens distribuídas entre 2006 a 2017 pelo Twitter, que notícias falsas se difundiram significativamente mais em termos de amplitude e velocidade do que a verdade em todas as categorias de informação, e os efeitos foram mais pronunciados para notícias políticas falsas do que para notícias falsas sobre terrorismo, desastres naturais, ciência, lendas urbanas ou informações financeiras. Assim, as notícias falsas se disseminaram seis vezes mais rápido do que notícias verdadeiras. E embora o uso de robôs tenha acelerado a disseminação de notícias verdadeiras e falsas no mesmo ritmo, as fake News se espalham mais do que a verdade porque os humanos, não os robôs, são mais propensos a difundi-la[2].
Tendo como pano de fundo o combate à globalização, a doutrina da “pós-verdade” – que se apresenta como um “mercado de opinião livre”, em que todos opinam sobre tudo”, porém sem qualquer com compromisso com os fatos e com a verdade – foi concebida e é financiada para sustentar o neoliberalismo, na economia, e o conservadorismo, nos valores, contando com políticos populistas e de direita para fazer a defesa desses postulados. É um fenômeno difícil de combater porque, com o nítido sentido de confundir, é associado a postulações factuais, buscando dar sentido de novidade e de evidência à narrativa, de um lado, e, de outro, porque foge do racional, e busca dividir as pessoas e instituições despertando nelas comportamentos, reações e sentimentos de rejeição e até de ódio a quem pense diferente.
Trata-se, sem dúvida, de uma situação que convém, sobretudo, aos agentes econômicos que lucram com essa situação: ela coloca em cheque questões vitais, como o aquecimento global ou a gravidade da pandemia Covid-19, como bem demonstrado no documentário “The Social Dilemma” (O Dilema das Redes), de Jeff Orlowski, de 2020, permitindo que informações não verificadas alcancem um grande público a custos reduzidos, gerando opiniões desinformadas, volúveis, e facilmente manipuláveis, e que geram divisões na sociedade que afastam as pessoas de problemas reais, provocam a perda da confiança e até mesmo impedem o diálogo político.
A forma de fazê-lo é sofisticada, porque substitui o debate sobre ideias, programas, conteúdo ou solução de problemas por julgamentos morais, especialmente quando embalada por teorias conspiratórias. A estratégia de comunicação consiste em associar movimentos, partidos ou instituições – que defendem os interesses coletivos, a solidariedade, a justiça, o humanismo, a proteção dos mais necessitados, bem como a ciência, os direitos humanos e o meio ambiente – com práticas que agridem a fé, os valores, os costumes e a moral de milhões de brasileiros.
Esse método de abordagem, que desloca o debate das ideias, dos programas e da solução dos problemas para julgamentos morais, apontando supostos culpados por problemas que afligem as pessoas, foi inventada como forma de evitar a perda de muitos seguidores, adeptos e eleitores, que, sabendo da verdade, não seguiriam nem elegeria seus verdadeiros algozes. Essa forma de fazer política tem prejudicado o meio ambiente, os direitos humanos e a saúde das pessoas, pois ao negar a ciência, muitas pessoas deixam de vacinar seus filhos, e ao responsabilizar os adversários das pós-verdade pelos problemas desloca o debate para disputas irracionais, persistindo a pratica que deseja preservar ou evitando a solução do problema, como atribuir às queimadas aos caboclo ou índio, por exemplo.
O nível de manipulação é inacreditável. Os pesquisadores dão exemplos da forma de manipulação em duas dimensões. Um exemplo trata da estratégia do “falso especialista”, lembrando a chamada “petição de Oregon”, um abaixo-assinado de 31.000 signatários, subscrita por pessoas com bacharelado em ciências, com o propósito de negar que o aquecimento global é causado pelo homem, que é apresentada como se fosse opinião de especialistas. Outro exemplo, que passa a impressão de volume e intensidade, é a criação de perfis falsos na internet, por meio dos quais pequenos grupos de operadores, valendo-se ou não de robôs para impulsionar conteúdos, podem criar a ilusão de opinião generalizada.
Segundo os pesquisadores, a desinformação na era da pós-verdade não pode mais ser vista apenas como uma falha isolada ou individual de cognição (incapacidade de processar informações) que poderia ser corrigida com ferramentas de comunicação apropriada, mas também como algo que deve incorporar a influência de epistemologias (estudo critico dos princípios, das hipótese e dos resultados das diversas ciências) alternativas que desafiam os padrões convencionais de evidência. Para eles, o enquadramento do mal-estar “pós-verdade” como “desinformação” não capta o estado atual do discurso público: o problema da “pós-verdade” não é uma mancha no espelho, mas o espelho como uma janela para uma realidade alternativa.
A abordagem de enfrentamento à pós-verdade, portanto, deve evitar confrontar a visão de mundo das pessoas, pois tendo sua visão desafiada a crença delas em falsas notícias pode até se aprofundar. Os pesquisadores recomendam duas formas eficazes de fazer correções: 1) não se dever desafiar a visão de mundo das pessoas, sendo mais eficaz persuadi-lo por intermédio de gráfico ou afirmando a autoestima dos destinatários; e 2) as correções devem explicar por que a desinformação foi disseminada em primeiro lugar, como forma de personificar ou desafiar a visão da pessoa.
De fato, para ser eficaz no combate à “pós-verdade”, é preciso ter muito cuidado com a narrativa e a forma de abordagem. As pessoas que embarcaram nesse mundo da “pós-verdade”, como sujeito ou objeto, estão com a sensação de pertencimento e de empoderamento, tanto porque se sentem “valorizadas” por receberem as informações falsas e serem estimuladas a reproduzir e disseminar, quanto porque se acham empoderadas, na medida em que reproduzem as notícias falsas e já tem até “seguidores”.
As respostas à era da “pós-verdade”, de acordo com os pesquisadores, requer considerar um contexto político, tecnológico e social maior no qual a desinformação se desdobra, devendo incluir soluções tecnológicas que incorporem princípios psicológicos (funções mentais como sensação, percepção, atenção, memória, pensamento, linguagem, motivação, aprendizado, etc), mediante uma abordagem interdisciplinar, que descrevem como “tecnocognição”, para conhecer e descontruir o projeto de arquiteturas de informação que encorajam a disseminação de desinformação.
A política “pós-verdade”, afirmam os pesquisadores, constitui-se em ferramenta numa luta pelo poder e sobre a natureza das democracias ocidentais, e a comunicação por si só não pode resolver conflitos políticos tão profundamente enraizados. Em vez disso, sua resolução requer mobilização política e ativismo público. Deste modo, o mal estar da “pós-verdade” só será resolvido quando houver motivações suficiente entre os políticos e o público para estar bem informado, quando houver incentivos políticos, sociais e profissionais para informar adequadamente, e quando a percepção do Senador Daniel Patrick Moynihan, de que “cada um tem direito a sua própria opinião, mas não a seus próprios fatos”, se tornar consensualmente aceita em ambos os lados da política.
E, como afirma a Dra. Cathy O’Neil, autora de “The Weapons of Math Destruction – How Big Data Increases Inequality and Threatesn Democracy”, publicado em 2016, no documentário “O Dilema das Redes”, esse é um problema a ser resolvido pelos humanos, e não pela tecnologia. Somente o Ser Humano será capaz de definir o que seja “verdade”, de definir um padrão socialmente aceitável do que seja a “verdade”, em lugar de defini-la a partir de “cliques”, “likes” ou repetições. Como diz O’Neil, “Este problema está na base dos outros, porque se não concordarmos sobre a verdade, não conseguiremos resolver nenhum dos nossos problemas.”
Quando mais se conhecer sobre o que é e como enfrentar a “pós-verdade” melhor. Assim, recomendamos a leitura de dois outros textos sobre o tema. O primeiro, sob o título “Em tempos de pós-verdade e de redes sociais”[3] e o segundo sob título “O que são as fake news, afinal”[4]. Ambos buscam mostrar o real significado dessas expressões e o mal que esse modo de fazer política representa, envolvendo pessoas de tal forma que é muito difícil mostrar a elas que estão sendo enganadas sem ofendê-las.
(*) Jornalista, consultor e analista político, mestrando em Políticas Públicas e Governo na FGV, diretor de Documentação licenciado do Diap e sócio-diretor das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Púbicas”.
(**) Doutor em Ciências Sociais, Mestre em Administração Pública, Advogado e Consultor Legislativo do Senado Federal. É também Professor da EBAPE-FGV e da ENAP. Ex-Subchefe da Casa Civil da Presidência da República.
[1] Stephan Lewandowsky, da Universidade de Bristol, Reino Unido; Uilrichk K. H. Echer, da Universidade da Austrália Ocidental; e John Cook, da George Maons University, Estados Unidos, no artigo “Beyond Misinformation: Understanding and Copin with the “Post-Truth” Era”, publicado no Journal of Applied Research in Memory and Cognition 6 (2017) 353–369.
[2] VOSOUGHI, Soroush, ROY, Deb & ARAL, Sinan. The spread of true and false news online. Science 359, 1146–1151 (2018).
[3] https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/em-tempos-de-pos-verdade-e-de-redes-sociais/
[4] https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/opiniao/o-que-sao-as-fake-news-afinal/