O impasse sobre os precatórios, tema que predominou na agenda deste fim de ano, parece ter chegado a uma conclusão que envolveu entendimento político e questões de técnica legislativa. Para entender o imbróglio devemos ver que o conflito possui três camadas. A mais visível delas, no caso dos precatórios, reside no temor de que, ao ser promulgada a emenda constitucional nas partes que Senado e Câmara finalmente concordam, o Congresso passe um cheque em branco, ainda que provisório, para Bolsonaro e o Centrão torrarem recursos com fins eleitorais. Como o texto aprovado no Senado “amarrou” o espaço orçamentário, definindo os objetivos de seu uso, uma promulgação parcial liberaria o governo para gastar sem as travas propostas pelos senadores.
A camada imediatamente inferior desse iceberg de problemas reside na disputa política entre os deputados e os senadores do Centrão e os que não integram esse grupo. O embate está na destinação da verba não carimbada para aliados do bloco majoritário. Como a distribuição fica a critério do relator do Orçamento, alguns podem se beneficiar, outros não. Tal situação é mais do que crítica em ano eleitoral. Lembrando que a liberação das emendas impositivas dos parlamentares deve ser igual para todos, independentemente de os deputados e senadores apoiarem ou não o governo federal. Já a destinação do chamado “orçamento secreto” não segue a mesma regra.
A terceira camada, menos visível, reside na tradicional disputa entre o presidente da Câmara e o do Senado. Contendas como essas estão colocadas pelo menos desde os tempos de Eduardo Cunha e Renan Calheiros, quando os dois presidiam as respectivas Casas legislativas. No período em que as duas Casas eram lideradas pelo deputado Rodrigo Maia e pelo senador Davi Alcolumbre, o entendimento entre ambas era melhor. Juntos, Maia e Alcolumbre avançaram regras que reduziram ainda mais o poder do Executivo sobre o Orçamento da União.
Agora, o relacionamento institucional entre o deputado Arthur Lira e o senador Rodrigo Pacheco não é dos melhores. E isso se reflete no andamento da pauta legislativa, uma vez que uma Casa tende a ter má vontade quanto ao andamento de matérias aprovadas pela outra. Obviamente, uma das fragilidades de nosso arcabouço institucional encontra-se no funcionamento do bicameralismo que não impõe regras às votações de matérias que vão de uma Casa para outra.
A emenda que propunha o fim da reeleição, aprovada em 2015 na Câmara, foi parcialmente aprovada no Senado. O resto repousa esquecido em algum escaninho. A reforma política aprovada no Senado, que estabeleceu o voto distrital no início do século, está mofando na Câmara. As rusgas institucionais entre as duas Casas fomentam a não decisão e o engavetamento de matérias, o que desvaloriza o Legislativo. O conflito entre Câmara e Senado por causa dos precatórios é um exemplo da dificuldade de se entender o jogo institucional no país, já que a maior parte do jogo se dá fora do alcance das vistas da opinião pública, abaixo da linha-d’água. Para o operador comum, os impasses parecem joguetes políticos de pique-esconde. Regras opacas e disputas políticas travam o debate, que deveria ser claro e compreensível para a cidadania. Parece existir uma vocação para o mistério.
Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2021, edição nº 2768