No fundo o que gostaríamos mesmo era o “direito de ser compreendido” ou “perdoado”, que apesar de utópico, seria mais adequado para os nossos tempos.
O debate acerca da harmonização dos princípios constitucionais da liberdade de expressão, do direito à informação, da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade da honra e da intimidade é sempre instigante, e temas quase sempre antagonicos como privacidade e compartilhamento de dados, liberdade de expressão e moderação das redes e, o mais recente, o direito ao esquecimento, estão na ordem do dia.
No caso do julgamento sobre o Direito ao Esquecimento, no STF, o relator ministro Dias Toffoli acertou ao afirmar que “O legislador foi propositadamente silente ao não reconhecer o direito ao esquecimento na Lei Geral de Proteção de Dados [.] A legislação pretendeu cercar os dados de ampla proteção, viabilizando meios para eventuais correções, retificações que se façam necessárias, mas em nenhuma delas trouxe um direito ao indivíduo de se opor a publicações nas quais dados licitamente obtidos e tratados tenham constado. Ao contrário, a lei é expressa no sentido de que não se aplica o tratamento de dados pessoais àquilo realizado para fins exclusivamente jornalísticos e artísticos”.
A LGPD possui pilares bem definidos, os quais o respeito à privacidade, a liberdade de expressão, a informação, a comunicação e opinião, a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem, além de outros de envergadura constitucional.
Deve-se destacar, no entanto, que a LGPD (em seu art. 4º) excetua de seu campo de abrangência o tratamento de dados pessoais realizado por pessoa natural, para fins exclusivamente particulares, e não econômicos; ou ainda, para fins exclusivamente jornalístico e artísticos; ou acadêmicos. Ainda excetua sua aplicação para fins exclusivamente de segurança pública; de defesa nacional; de segurança do Estado; ou de atividades de investigação e repressão a infrações penais.
Os temas de natureza penal já são, inclusive, objeto de discussão para uma “LGPD penal”. Mas o meu interesse por ora é diverso, a liberdade de expressão. Sábia foi a decisão do legislador em afastar da LGPD de tratamentos de dados pessoais realizados para fins exclusivamente jornalístico e artísticos.
A CF/88 preconiza, em seu art. 220, que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição” e que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”. Por fim, reafirma a vedação a toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
É paradigmática a decisão da Corte na ADPF 1301, que concedeu total procedência à ação para declarar a não recepção da Lei de Imprensa, de 1967, pela Constituição de 1988. O Supremo Tribunal Federal entendeu que o capítulo constitucional da Comunicação Social representa segmento prolongador de direitos enraizados na dignidade da pessoa humana, quais sejam, livre manifestação do pensamento e o direito à informação e à expressão artística, científica, intelectual e comunicacional, bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos.
Com base nisso, ao analisar eventual conflito aparente entre os direitos em referência, o STF remete a uma “lógica diretamente constitucional de calibração temporal ou cronológica na empírica incidência desses dois blocos de dispositivos constitucionais”, com referência ao art. 220, e aos seguintes incisos do art. 5º: vedação do anonimato (parte final do inciso IV); direito de resposta (inciso V); direito a indenização por dano material ou moral à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas (inciso X); livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (inciso XIII); direito ao resguardo do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional (inciso XIV).
O texto constitucional por si só seria suficiente para deixar evidente que a proteção de dados pessoais não poderia embaraçar o direito à informação jornalística e a criação artística. De fato, não seria razoável exigir do jornalismo investigativo o consentimento prévio da pessoa objeto da apuração para obter as informações necessárias, tratar e publicar conteúdo de interesse da sociedade, inclusive seus dados pessoais.
Ao reconhecer a proteção ao anonimato da fonte garantindo o seu sigilo e por óbvio seus dados pessoais, entendeu o constituinte como essencial para o pleno exercício do jornalismo na preservação da privacidade e identidade da fonte. A fonte jornalística é vital para que denúncias sejam reveladas e os fatos alcancem o grande público.
A LGPD, ao abordar fins exclusivamente jornalísticos e artísticos atende restritivamente o exercício dessas atividades. Nesse sentido, a liberdade de expressão artística, igualmente, não pode ser constrangida sob invocação da proteção de dados pessoais, que impeçam a publicação de obras literárias biográficas, audiovisuais, como documentários e dramaturgias, que abordem, em seus conteúdos, contextos e enredos com esses dados.
Sendo a convicção religiosa, a opinião política, a filiação sindical ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dados de natureza sensível, muitos trabalhos artísticos, por exemplo, poderiam ser censurados por não preencherem, objetivamente, as hipóteses legais.
E é nesse aspecto que devemos manter no radar o acerto do ministro Dias Toffoli, ao não apenas indicar o silêncio da Lei quanto ao direito ao esquecimento na LGPD, mas a constitucionalidade desse silêncio.
A busca pela informação é tão integrada à vida humana quanto comer ou dormir. A Acta Diurna Populi Romani, criada por Júlio César em 69 a.C., afixada em uma tábua branca, na parede de sua casa, era um veículo de notícias sobre cerimônias, jogos, eventos religiosos, acontecimentos relevantes, atividades do Senado e da República.
Entretanto, somente com a criação de Guttenberg a imprensa nasceu como instrumento de divulgação.
Jornal, rádio e a televisão ainda ocupam um desempenho respeitável. Todavia, a Internet assume o papel de relevância informacional na sociedade contemporânea, até por convergir todas as outras mídias e se abastecer compulsivamente de seus conteúdos. O Kantar Social TV Ratings que avalia repercussão de programas de TV nas redes sociais identificou que mais de 90% dos 363 milhões de tweets originados em 2020 sobre conteúdos de vídeo vieram de programas da TV aberta, como realities shows, séries e novelas. Não por outra razão a chamam Sociedade da Informação.
Portanto, cabe a essa mesma sociedade aprender a lidar com a dimensão das informações. E, definitivamente, isso é algo que não se pode esquecer ou deletar. Se é incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento, no fundo o que gostaríamos mesmo era o “direito de ser compreendido” ou “perdoado”, que apesar de utópico, seria mais adequado para os nossos tempos.