*Artigo publicado originalmente na Gazeta do Povo
O planejamento estratégico é básico para qualquer indivíduo ou grupo que precise entrar em ação frente ao inesperado. Preparar uma equipe para lidar com acontecimentos que ainda irão ocorrer, reunir esforços humanos e financeiros para concretizar uma ideia, um sonho, enfim, todas as ações a serem realizadas deverão passar por fases de execução baseadas em um planejamento estratégico inicial.
Mesmo que esses acontecimentos não se apresentem de uma feição completa, sem delineamento, um planejamento estratégico bem feito possibilita que certas lacunas sejam preenchidas de forma técnica, sem paixões ou vieses, apontando para direções mais claras e abrindo o leque de possibilidades para que o objetivo seja mais facilmente alcançado. Quem consegue realizar esse exercício de planejamento tende a se surpreender bem menos com os pontapés e viradas no meio do caminho do que aqueles que não lhe dão o devido valor.
Nesta atual crise da Covid-19 no Brasil, muitos debates vêm ocorrendo acerca de posturas e decisões que os governos federal e estaduais deveriam adotar. Falou-se muito sobre isolamento horizontal ou vertical, uso em massa da cloroquina, compras de equipamentos de necessidade médica, entre outras coisas.
Independentemente do mérito daquilo que o governo federal defende versus o que os governos estaduais fazem, o que se percebe é a flagrante falta de planejamento estratégico em todo o processo. Mesmo que exista um planejamento por trás, este não está sendo dividido com a população de forma que a compreensão da natureza da situação seja facilmente assimilada.
No caso da economia, conseguimos enxergar algumas ações pensadas de acordo com o desenvolvimento da crise. Está no DNA de qualquer equipe econômica trabalhar com projeções e tentar garantir que as positivas prosperem e que as negativas sejam revertidas.
No âmbito político, não estamos vendo esse mesmo cuidado. Durante semanas, o presidente Jair Bolsonaro defendeu o chamado “isolamento vertical”. Mesmo que a ideia não seja apoiada por muitos, nota-se que a forma como está sendo implementado não ficou esclarecida. O debate resumiu-se a “manter grupos de risco e de terceira idade em isolamento”, porém, não foi demonstrado, tecnicamente, como isso ocorreria.
Segundo o Ministério da Saúde, temos 58 milhões de brasileiros com alguma doença crônica. Qual seria o percentual deste número que se encaixaria no grupo de risco? Quantos brasileiros teriam noção de estar no grupo de risco ou não? Com qual frequência um cidadão faz check-up (imagino que um percentual mínimo da população)? Além disso, quantos problemas já existentes (de pulmão, fígado, rins) ainda não se manifestaram e colocariam uma pessoa no grupo de risco, mesmo que os sintomas ainda não tenham se desenvolvido?
No caso dos idosos, a dificuldade aumenta. Quantos desses idosos moram com jovens, ou seja com gente fora do grupo de risco? Dependendo dos números, quantos teriam condição de se isolar em suas residências (levando em consideração que muitos não possuem cômodos disponíveis para o auto isolamento)?
A estratégia de liberação da população para retornar a suas atividades deve ter mitigações, além de orientações sobre distanciamento social e limpeza das mãos. Como se mantém distanciamento social utilizando trens, metrôs e ônibus lotados? Esses meios de transporte funcionariam na metade de suas capacidades? Caso a resposta seja sim, teríamos números sobressalentes de ônibus para compensar a perda de espaço? Como fazer em diversas comunidades do país que não possuem água corrente e, muito menos, acesso a máscaras?
No momento em que lidamos com o desconhecido, tudo deve oferecer oportunidade de recuo. Seria sensato, por exemplo, autorizar uma abertura enquanto o número de contaminados por designação geográfica fosse monitorado para que o recuo fosse feito se uma situação apresentasse uma leve deterioração? Para isso, não precisaríamos de muito mais testes do que estamos fazendo no país?
A natureza principal de um planejamento estratégico é a disponibilidade de dados. Os dados que temos sobre contaminados não irão condizer, necessariamente, com a verdade. Se temos 17 mil infectados, mas realizamos apenas 70 mil exames, como podemos mensurar a real disseminação do vírus?
Seja qual for a estratégia adotada pelo governo, a demonstração de uma linha de pensamento que vá além da intuição, convicção pessoal ou simples analogia é vital para que a sociedade absorva a gravidade da situação.
É difícil esperar um comportamento ordeiro, se ninguém entende a racionalidade por trás da estratégia utilizada. Quando a linha lógica de uma decisão é apresentada passo a passo, a ideia ganha legitimidade e seu alcance se multiplica. Não podemos combater um inimigo invisível apenas com a expectativa da fraqueza do inimigo. É preciso entender a natureza da disseminação por meio de dados médicos e do perfil da população brasileira.
Nossa condição particular e a das pessoas que nos rodeiam não representam fielmente a condição de milhões de outras pessoas. Não há individualização de casos de sucesso ou de fracasso quando uma batalha está sendo travada em nome de toda uma sociedade.