Não se trata de atitude isolada. Os dois grupos têm o respaldo de 104,7 milhões de cidadãos, ou 71,16% do eleitorado, resultado do 2º turno das eleições de 2018.
Nos estertores do regime militar, há 39 anos, o Brasil via surgir o petismo, que se transformou na mais bem-sucedida seita política brasiliana. Ou “religião secular”, nas palavras de Roberto Campos. 2018 parece ter assistido ao advento de uma outra seita: o bolsonarismo.
Os dois grupos têm a autoconfiança obtusa dos sectários. Como creem estar sempre certos, ou se está com eles ou contra eles.
Ambos cultivam, como consequência natural, a intolerância. Não têm adversários, mas inimigos.
Intolerância, fruto do sectarismo
Petistas e bolsonaristas são iguais? Por óbvio que não. E não apenas na visão de mundo antagônica que propugnam.
O petismo é herdeiro da chamada esquerda e estriba-se num líder político habilidoso e cuja resiliência é sui generis. Afora isto, Lula (PT) chegou ao poder de forma arquitetada.
O bolsonarismo, ao contrário, sem tradição histórica, carece de organicidade. Jair Bolsonaro (PSL) é o improvável representante da chamada direita.
Galgou o posto de maneira acidental. A vitória do capitão-mor é fruto de uma conjugação de fatores diversos, como a Lava-Jato, a recessão histórica, a prisão de Lula, a insegurança galopante, o Governo Dilma, a corrupção escorchante, o advento das redes sociais etc.
O petismo não vai deixar de existir por conta dos sucessivos reveses, pois é caudatário de um pensamento universal. Sem Lula pode se fragmentar, mas não acabar.
O bolsonarismo aglutina momentaneamente liberais, libertários, conservadores, globalistas e antipetistas em geral. Em comum, têm a certeza de que não querem o PT e seu modelo de governo de volta.
Privatistas x estatizantes, antiabortistas x abortistas, armamentistas x belicistas, monetaristas x desenvolvimentistas, palmeirenses x corinthianos. São muitos e concretos os antagonismos.
Além disso, o corintiano Lula tem consciência da força de sua ideia. Já o palmeirense Bolsonaro reconhece suas limitações.
O que torna ambos os grupos deletérios é a intolerância, fruto do sectarismo.
Democracia afrontada
Se o PT é atavicamente intolerante, uma das sementes do autoritarismo, as ações de seu principal oponente sugerem, até aqui, a mesma toada.
Petistas, por exemplo, atacam Israel, a única democracia duma região conflagrada. Mas idolatram ditadores como Fidel Castro (Cuba) e Hugo Chávez (Venezuela), além de regimes autoritários, homofóbicos e misóginos enraizados no Oriente Médio. Chamam isto de estratégia.
Por seu turno, Bolsonaro homenageia o ditador pedófilo Alfredo Stroessner (Paraguai). Sem falar dos generais-ditadores brasileiros, seus ídolos. Também na política, os extremos se atraem.
Neófito no poder, o bolsonarismo ruma devagar em direção à senda liberticida, caminho para afrontar a democracia. O mais recente episódio é o da cientista política Ilona Szabó.
Convidada para compor, como suplente, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, subordinado ao Ministério da Justiça, foi alvo de ataques na internet. Sua indicação partiu do titular da pasta, Sergio Moro, expoente do bolsonarismo.
Como o capitão-mor não gostou, o ministro da Justiça cedeu à pressão e desconvidou a cientista política, que não teria poder algum, a não ser o de dizer o que pensa – coisa que já faz. E o fará, agora, com maior repercussão. Em bons português e inglês.
Administrativamente, o gesto da militância bolsonarista, acatado por Bolsonaro e Moro, tem pouca relevância. Exibe, no entanto, intolerância e burrice.
Intolerância porque a turba que escorraçou Ilona Szabó não aceita o contraditório, essência da democracia. Burrice porque abrandaria, um pouco, a face de um governo indisposto a dialogar com a parte expressiva da sociedade que não o aprova – 6 em cada 10 brasileiros, segundo pesquisa CNT/MDA.
Lógica do paternalismo
A escolha da diretora do Instituto Igarapé representaria o avesso da indisposição do PT ao diálogo com os diferentes. O desconvite, que seria insignificante se isolado, mostrou, ao contrário, que bolsonaristas são o avesso do avesso dos petistas quando o assunto é o colóquio civilizado – como o que aconteceu em Davos, no Fórum Econômico Mundial, entre Moro e Ilona.
O slogan dos contendores do instável cenário político – aqui e além-mares, diga-se de passagem – poderia ter um verniz hipócrita comum: “ouço todos, desde que pensem como eu”. Um cínico aprovaria o bordão, alegando que ambos os lados têm legitimidade.
Afinal, para o bem ou para o mal, são fruto da escolha de 104,7 milhões de eleitores (71,16%) no 2º turno das eleições de 2018. Metade da população do Brasil. No 1º turno, foram 80 milhões (54,72%) que optaram por PT e PSL.
Quem acha que eleitores não têm nada a ver com a escolha de seus representantes joga a culpa da intransigência política exclusivamente nos eleitos. Para os que discordam da lógica do paternalismo, segundo a qual as pessoas não são responsáveis pelas mazelas do Estado onde vivem, a intolerância é coisa nossa.
De acordo com os primeiros, os eleitos não nos representam. Os segundos, veem no Parlamento e no Governo o espelho da sociedade.
* Itamar Garcez é jornalista