Uma consequência nefasta da política em tempos de radicalismos é a desconstrução da história recente, pois este desmonte se espraia para o dia a dia da administração pública causando-lhe prejuízos. Inclinação intrínseca aos políticos (mas não apenas a eles), a busca pelo desfazimento das conquistas do adversário provoca, por exemplo, a descontinuidade de projetos e ações.
Há poucos anos prestigiado colunista de um matutino nacional cotejou as administrações de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Concluiu o periodista que, à vista de nossos vizinhos latino-americanos, tivemos sorte (e juízo, já que ambos foram eleitos).
A iniciativa do periodista foi rara e não chamou a atenção. Jornalistas não gostam de reconhecer virtudes em parlamentares e seus congêneres. Já para estes é praxe menosprezar qualquer ação adversária. Se fez, fez mal. Se não fez, deveria tê-lo feito.
Não, nossos políticos não são diferentes dos de outras paragens. Norberto Bobbio resumiu esse antagonismo universal da política: “(…) associar e defender os amigos, desagregar e combater os inimigos”. É o conceito do “amigo-inimigo”. Não há moderação.
Para petistas, os oito anos de FHC apenas agudizaram o liberalismo econômico. Na visão dos tucanos, os oitos anos de Lula tão somente malversaram a administração pública. Ou seja, somadas as duas visões, teríamos testemunhado 16 anos de nulidade histórica.
Não foi essa a conclusão do periodista que exemplificou os avanços dos governos de FHC e Lula – obviamente sem desconhecer os percalços de ambos. FHC trouxe a esperada estabilidade econômica e a melhoria da tecnologia da comunicação. Lula promoveu inclusão social inigualável e debelou a fome.
Há quem chegue ao paroxismo e defenda que nada melhorou no Brasil desde que por aqui aportaram as caravelas lusitanas (recurso retórico mais comum à esquerda, mas por vezes encampado pelos demais matizes políticos). Se acaso perscrutassem a lista de condenados pela justiça veriam situações inéditas – juiz, grande empresário, parlamentar e até banqueiro encarcerado. Há pouco tempo, esses grupos pareciam inimputáveis.
Parte desse modus operandi, que oblitera o passado, repousa no atavismo político. Parte, no figurino político global aqui reproduzido. O mais perigoso, porém, parece ser a busca do poder pelo poder, sem outro objetivo. Num exemplo dramático, em 2013, os republicanos pareciam dispostos a paralisar os EUA quando o Senado norte-americano rejeitou o orçamento proposto pelo presidente democrata Barack Obama.
Há, no entanto, quem substitua o improvável desprendimento em relação ao “inimigo” num modelo de pragmatismo. O presidente François Mitterrand, em 1986, após ser derrotado pela direita gaullista, decidiu indicar Jacques Chirac como primeiro-ministro da França, seu provável oponente nas eleições que se avizinhavam. Desprezou o receituário conciliador, o moderado Valéry Giscard d’Estaing.
Chirac desfez o que Mitterrand havia engendrado. O primeiro-ministro privatizou o que o presidente havia estatizado. Era o que Mitterrand pretendia, mas não queria fazê-lo de próprio punho. A audácia, ao reconhecer que a estatização socialista havia fracassado e nomear seu maior “inimigo” para reverter o quadro, deu certo. Contra um Chirac sem novidades, Mitterrand ganhou mais sete anos de poder.
Pareceria quimérico, mormente em tempos de exacerbação política, esperar lhaneza de caráter. Mas, se volver ao conceito peripatético da equivalência do “interesse de quem governa e de quem é governado” é utópico, o outro extremo, que ora assistimos, é deletério.
A desdita não é maior porque há abismos entre o que se prega na ribalta e o que se pratica nas coxias. Lula adotou a política econômica de seu antecessor enquanto acelerava a distribuição de renda, esta sua principal aptidão. Tucanos, que esperam assumir o lugar que já foi de FHC, já desistiram do arroubo inicial de solapar o bolsa família.
Dificilmente veremos agrupamentos políticos com a consciência utópica de Aristóteles: o fim da política não é viver, mas viver bem. E, caso vejamos, não será mais política. Esta característica restringe-se a indivíduos. De qualquer jeito, parece estultice empenhar-se em desconstruir hoje para recompor o desfeito amanhã.