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Por que as sanções não são suficientes para que Putin recue – Thiago de Aragão

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A Guerra na Ucrânia tem tudo para se tornar um problema para além das fronteiras ucranianas. Na prática, se observarmos os aspectos comerciais, financeiros e diplomáticos, já se tornou um conflito global. A grande questão no momento é até que ponto o confronto militar pode envolver outros países europeus.

Primeiramente, devemos observar os principais objetivos dos países em jogo. O que a Rússia, Ucrânia e Otan querem se resume a um universo de falta de potenciais convergências e excesso de divergências. Exatamente aí é que mora o perigo. A Rússia, ou mais precisamente Vladimir Putin, possui alguns objetivos relativamente claros, começando por impedir a todo e qualquer custo que a Ucrânia entre na Otan. Em segundo plano, impedir que a Ucrânia entre na União Europeia. Para Putin, isso é inegociável e não há nada (sanções, pressões econômicas etc.) que seja mais valioso do que atingir esse objetivo.

Em segundo lugar, já temos informações suficientes de que Putin almeja o retorno da Rússia a um estágio de influência e controle maior e absoluto em cima de países que fizeram parte da União Soviética. Logo, impedir que a Ucrânia entre na Otan (e UE), se alinha a ter a Ucrânia dentro ou como um satélite controlável da Rússia, tal qual Belarus.

Quando observamos os interesses ucranianos, podemos voltar até 1994, ano em que ocorreu o primeiro contato entre Kiev e a Otan. De lá pra cá, a Ucrânia fez diversas tentativas de engajamento não só com a Otan, mas também com a União Europeia. Assim, os objetivos primordiais da Ucrânia são incompatíveis com qualquer objetivo russo, pois o maior deles é afastar-se do núcleo de influência russa e “europeizar” o país por meio do ingresso na União Europeia.

Para Volodymyr Zelensky, a adesão à UE é mais importante do que a adesão à Otan. No entanto, entende-se que a primeira não ocorra sem uma teia de proteção mais sólida, como ter os poderosos países da aliança defendendo a Ucrânia, caso a Rússia impeça a adesão.

Entrar na UE e na Otan faz parte não só do desejo do governo, mas do povo. Se por um lado a Rússia entende que um anúncio de neutralidade ‘ad eternum’ dos ucranianos solucionaria parte do problema, essa possibilidade não está na mesa ucraniana no futuro próximo.

Já a Otan, pela própria natureza da organização, visa ampliar o número de membros, principalmente no Leste Europeu para, justamente, diminuir a influência e consequentemente, o “risco” russo de intromissão, tanto armada (como vemos), quanto indireta, por meio de ataques cibernéticos, manipulações eleitorais ou sabotagem. Dessa forma, os interesses da Otan (e também dos EUA, Reino Unido e outros aliados) seriam cessar a capacidade de influência direta ou indireta da Rússia no continente europeu, sufocar o ímpeto russo de usar a força bruta ou ameaças cibernéticas para modificar o rumo das políticas internas dos países membros.

Em cima disso, não podemos desconsiderar que existam interesses próprios de vários membros da Otan por expansão de suas próprias redes e núcleos de influência. Estrategicamente, ter a Ucrânia como aliada formal expande o poder de influência geopolítica dos EUA acima de qualquer outro país.

Como vimos, os objetivos primários da Otan e da Ucrânia são essencialmente contraditórios aos objetivos primários da Rússia. Isso inibe a possibilidade de um acordo diplomático eficiente e duradouro. Além disso, o que está na mesa em termos de “perdas” passou do estágio do aceitável tanto para a Ucrânia quanto para a Rússia.

Se Putin recua e decide por um cessar-fogo, o número de mortes de soldados russos, mais o impacto financeiro e comercial em cima do país, o colocaria numa posição de fragilidade interna nunca antes vista. Putin não consegue mais recuar se não houver uma narrativa positiva de uso doméstico para justificar o estrago feito até o momento. As sanções (que demonstraram uma capacidade admirável dos EUA, Europa, Japão etc. de alinhamento e velocidade na aplicação) não são suficientes para que Putin perceba que a invasão foi um erro. Muito pelo contrário: quanto mais força com as sanções, menos Putin tem a perder e mais agressivo os ataques passam a ser.

A Ucrânia, por outro lado, só se colocaria numa mesa de negociações com termos russos estabelecidos se a derrota for total e absoluta. Essa derrota não passa necessariamente pela derrota do exército ucraniano, mas também pelo desejo popular de abrir mão da luta e aceitar o destino de fazer parte do universo russo de influência. Pelo que vimos até o momento, essa não é a característica do povo ucraniano. Mesmo com uma derrota militar, Putin encontraria uma resistência popular contínua e sangrenta, fazendo com que a Ucrânia se tornasse um território de guerra mil vezes pior do que os americanos e os próprios russos encontraram no Afeganistão.

Podemos ter uma guerra generalizada na Europa? Podemos, mas isso depende muito mais de erros e equívocos do que de decisões contundentes de Putin ou da Otan. À medida que os ataques se intensificam, a possibilidade de erros aumenta. Quais seriam esses erros? Bem, um bombardeio equivocado em tropas polonesas do outro lado da fronteira; o abatimento de um avião russo que sobrevoa um estado da Otan ou até de outro país, como as invasões de caças russos no espaço aéreo sueco no início desta semana, por exemplo, mesmo sem a Suécia ser membro da Otan; ou até mesmo tentativas internas de enfraquecer Putin, que ele poderia atribuir a agentes externos. Tudo pode acontecer.

A China, antes no centro das tensões do mundo, está dando “graças” a Confúcio pela guerra na Ucrânia. Foi deixada de lado momentaneamente, embora não deixe de ter um papel central nessa confusão. Se diplomaticamente os chineses seguem batendo cabeça e não sabendo se posicionar claramente em relação à guerra, por outro eles se tornaram um porto seguro financeiro e econômico para o futuro próximo da Rússia.

Com o cancelamento do Nord Stream 2, os mesmos campos de gás que abasteciam a Europa serão redirecionados para abastecer a China. Pequim já deixou claro que amplia as importações de gás, petróleo, lítio, alumínio e fertilizantes da Rússia. Tudo aquilo que a Rússia não consegue exportar no momento, será redirecionado à China, garantindo assim um fluxo contínuo de dinheiro.

Alguns cenários vão se desenhando: se a Rússia conquista a Ucrânia, consideraríamos uma ‘vitória de pirro’. Putin toma controle da capital, mas não terá paz na manutenção da normalidade. Seu exército será alvo constante de sabotagens e ataques, podendo levar a um estado de terror no país, com a instauração de um governo pró-Kremlin, sem limites para segurar o ímpeto guerreiro da população.

Uma vitória na Ucrânia poderia abrir margem (já que tudo está perdido mesmo nas relações com o Ocidente) de agir em cima da Geórgia – que pediu para entrar na UE nessa última semana; como também da Moldávia – estratégica do ponto de vista de controle da Ucrânia, e de pressão no importante membro da Otan, a Romênia.

Se a Rússia não consegue conquistar a Ucrânia agora, abre-se outro cenário que não selaria e decretaria o fim da guerra. Quanto mais a Ucrânia resiste, mais a Rússia atacaria e com mais agressividade. Quanto mais agressividade, mais respostas da Otan e aliados em sanções, podendo chegar a um ponto de ebulição e confronto entre as tropas.

O fracasso em conquistar o país também traria mais instabilidade interna em cima de Putin, principalmente dos seus aliados, subordinados e empresários que estão vendo seus patrimônios desaparecerem. Isso dificilmente levaria Putin a recuar, mas em dobrar a aposta.

Se a Ucrânia capitula e busca um acordo de paz, teríamos um quadro de retorno à estaca zero, mas com alguns aditivos. Putin ganha uma força interna grande e passa a entender que a Otan é uma máquina de sanções, não de guerra. Sabendo que as intervenções de países ocidentais não passaram do campo econômico (e já com sanções até o pescoço), nada impede que Putin aproveite essa conjuntura para repetir o que fez na Ucrânia em outros países.

Nas últimas semanas, o presidente russo fez ameaças diretas e contundentes sobre a Finlândia e a Suécia. Caso esses países avancem nas pretensões de entrarem na Otan, poderiam ter o mesmo destino que a Ucrânia. Diferentemente da Ucrânia, não creio que a Otan não intercedesse militarmente para proteger a Suécia. Nesse caso, teríamos uma guerra ampla e destruidora. Esse seria o cenário menos provável, mas não impossível.

Quando uma guerra se resume à análise psicológica de um indivíduo – Putin –, a capacidade de prever torna-se nublada. Podemos apenas especular. No entanto, a tragédia se desenhou no ato da invasão, pois qualquer coisa que ocorra – vitória russa, vitória ucraniana ou cessar fogo – nos levaria a um grau de instabilidade nunca visto desde 1991. Putin pode não ganhar na Ucrânia, mas não será freado até que ganhe algo.

 

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