Publicada no Correio Braziliense
Ana Dubeux , Ana Maria Campos e Carlos Alexandre
A foto em que ele aparece aos 4 anos dormindo por cima de livros fiscais perdeu-se no tempo. Mas o afilhado do coletor fiscal de Pesqueira, cidade do agreste pernambucano, nunca abdicou do gosto pela área tributária. Bem que tentou enveredar por outros caminhos: foi porteiro de hospital, professor de literatura e matemática em cursinhos pré-vestibular e formou-se em geologia.
Falou mais alto a profissão do padrinho. Everardo Maciel tornou-se secretário da Fazenda aos 32 anos, em Pernambuco. Antes, aos 25 anos, fora Superintendente do Conselho de Desenvolvimento de Pernambuco e a partir daí construiu uma carreira na área pública: foi quatro vezes secretário-executivo de ministérios em Brasília, onde veio morar em 1975. Também atuou no GDF, como secretário da Fazenda e Planejamento.
Mas o cargo que o tornou conhecido foi o de czar fiscal do governo Fernando Henrique Cardoso. Por oito anos, com mão de ferro, ele foi um dos mais ferozes arrecadadores de que se tem notícia. Hoje, profere dezenas de palestras, ministra aulas e faz o que parece ser sua maior arte: contar causos e histórias, com humor afiado. Mas Everardo também sabe escolher palavras duras, especialmente quando se refere ao atual momento. Há uma crise política, econômica e moral em curso. E, o mais grave: faltam protagonistas para superá-la.
Em relação ao Distrito Federal, diz que uma auditoria benfeita é suficiente para acabar com a querela entre Rodrigo Rollemberg e Agnelo Queiroz sobre o rombo nas contas do DF. Critica soluções demagógicas na redução dos preços dos remédios e lamenta o abandono da cidade. “Brasília é uma cidade em contínua decadência. ”
De Pesqueira para o mundo…
Nasci em Pesqueira (PE). Com 15 anos, fui estudar no Colégio Salesiano, no Recife. Meu pai quebrado, eu tendo de me virar, quando cheguei lá, perdi todos os meus livros na rodoviária. Fui procurar pensão. Com aquela idade, cuidava de tudo, tinha que ser dono do pedaço. Na pensão que fui morar, no térreo, era uma fábrica de reforma de móveis. A gente ficava no primeiro andar. Um quarto pequeno e dormiam quatro, a gente tinha que ter cuidado para se cobrir bem por causa do rato. Os ratos roíam os pés. Fui trabalhar no hospital do Câncer como porteiro, mas passei apenas três meses nessa função. Um dia, o médico deixou um trabalho em cima da mesa. Estava sem ter o que fazer e comecei a botar acento, ponto e vírgula. Daí a pouco, ele chega e procura pelo trabalho. Disse-lhe: “fiquei fazendo besteira”. Ele, polidamente, discordou, pegou o trabalho, em meia hora voltou e disse: “Você não vai ficar aqui mais. Vai ficar arrumando as coisas que escrevo”. Fiz Geologia na Universidade Federal. Depois entrei em outro mundo. Vim pra Brasília em 1975. Tenho quatro filhos e seis netos. Todos moram aqui. Outro dia, fui multado por furar um sinal vermelho na Avenida Hélio Prates. Nem sei onde fica isso. Eu disse que vou mostrar a quilometragem do meu carro para ver se dá para chegar lá e voltar. Claro que foi chute do Detran. A placa era parecida com a minha. Saio pouco de casa. Só ando pela Asa Sul, do escritório para casa. Vou dizer uma coisa, tenho um Honda Civic, comprado em janeiro de 2014. O carro tem apenas 5,4 mil quilômetros. Rodei pouco. Viajo muito de avião.
A palavra crise está na boca de todo mundo. É a maior dos últimos 50 anos?
Creio que sim. Não quero fazer profecia a partir dessa constatação, mas o clima tem muita semelhança com o que vi em 1964. Uma nau sem rumo, à deriva. Estamos sem saber para onde vamos. Cada dia se diz uma coisa: “Não vamos dar mais subsídios aos campeões da economia”. No dia seguinte, “7% para o setor automotivo”. É contradição à vista desarmada.
Não tem meta. Mas depois que chegar a ela, a gente dobra…
Dobra, sem dúvida. Gosto muito de uma passagem que se aplica bem ao Brasil, Alice no país das maravilhas. Quando Alice encontra com o gato numa encruzilhada, pergunta: “qual caminho que devo tomar?”. Ele indaga: “para onde você quer ir?” Alice responde: “não sei”. O gato conclui: “então, tome qualquer um”. Parece muito com o Brasil de hoje. Um país que não sabe para onde vai. Tem coisa mais acintosa do que “Brasil, pátria educadora”? É um deboche.
A solução é política? Como enxerga o futuro próximo?
O que falta é capacidade de negociação política. Vou dar exemplo, recentíssimo: Obama foi ao Congresso, há dois anos, negociar o orçamento americano. Isso decorre de sua consciência quanto à indispensabilidade da interlocução política na solução dos grandes problemas. Aqui, continuamos discutindo aumento de salários, desonerações tributárias, “pautas-bomba”, etc., como se nada estivesse acontecendo. É o reinado da alienação política.
E para onde a gente vai?
É uma página em branco. A diversidade de possibilidades é tão grande que todas as hipóteses são plausíveis. Torço para que não nos convertamos na Grécia do Sul. Mas a situação é grave.
Todos que fazem críticas são vistos como inimigos, adversários, golpistas, coxinhas…
Não me surpreendo com isso. Não era assim que se dizia no governo militar? Quando se levantava para dizer que estava errado, dizia-se que era antipatriótico. Era assim. Existe uma expressão no direito penal que gosto muito e aqui se aplica: cegueira deliberada. Então essas pessoas estão com cegueira deliberada.
O governo não enxerga as soluções necessárias?
Uma iniciativa modesta, sem efeito fiscal relevante, é a redução do número de ministérios. Claro que não vai resolver o problema fiscal. É, entretanto, uma providência indispensável, por uma questão de percepção. Se você diz que está quebrado, não vai pedir ajuda usando um terno Armani. É um simbolismo que compromete a realidade. O gigantismo do ministério é o terno Armani da crise fiscal.
Ainda há chance de pacto? Tem tempo ainda?
Pacto presume, ao menos, protagonistas. Pacto de quem com quem?
E sem saber o rumo…
Falta definir protagonistas, falta definir conteúdos. Pixuleco, pode?
O senhor ocupou um cargo importante no governo Fernando Henrique. O PT era uma oposição que incomodava de verdade?
A oposição é legítima. Reclamar é legítimo. A crítica é legítima. Quem não estiver preparado para isso saia do ramo.
Se essa crise ocorresse no governo FHC, a administração já teria caído?
Provavelmente. Estaria derrubando governo, arrastando correntes, sem dúvida nenhuma. Acho a oposição brasileira hoje, de certo modo, muito responsável pelo atual estado de coisas. Ela é demasiado tímida e, muitas vezes, incoerente.
Hoje mais do que antes?
Sem dúvida. Como os fatos existem e na política não existe vácuo, esses movimentos de rua ocuparam espaço. Primeiramente com um discurso muito difuso, agora com um discurso mais focado. É preciso lembrar que a degradação da política tem permitido o surgimento de agrupamentos partidários fora do padrão, na Espanha, na Grécia, na Inglaterra, etc. Surgem até coisas estranhas, como Trump.
O governo diz que foi pego de surpresa. O senhor acredita?
De forma nenhuma. Fiz uma conferência em setembro de 2013 e já dizia que essas coisas iriam acontecer. Miou, tem pelos e quatro pernas, é gato. Não fique achando que é cavalo. Era muito previsível o que iria acontecer.
Dava para perceber?
Claro. Pedaladas, a chamada contabilidade criativa, já eram um sintoma de que havia algo profundamente errado. O que matou a Grécia foram estatísticas falsificadas, populismo, déficit fiscal. Os ingredientes não são os mesmos daqui?
Esses problemas vêm do primeiro mandato da presidente Dilma ou já haviam no governo Lula?
No governo Lula, nós rasgamos bilhete de loteria premiada. Naquelas circunstâncias, com as condições tão favoráveis no mercado internacional, era inadmissível não ter feitos coisas que plantassem para o futuro. Inadmissível. É a reprodução da marcha da insensatez tropical. Faz errado e vai continuar errado. O discurso é contraditório, caótico.
E o julgamento das pedaladas pelo TCU? A AGU alega que isso sempre existiu…
Isso seria o equivalente a dizer: como a prática do roubo é secular, o roubo está perdoado. Tem uma expressão, conhecida no âmbito do direito, que é a seguinte: ninguém pode alegar torpeza em seu próprio favor. Pedalada houve, todo mundo viu. Era uma coisa óbvia: as paredes do Planalto sabiam disso. Mas aí vem aquela história: enquanto o tribunal de contas não disser que está errado, a gente vai continuar fazendo, o que é um grande equívoco.
A crise é mais econômica ou política?
É difícil descobrir, porque há uma intimidade grande entre os fatos. A crise tem vários pais. Há uma crise moral. Cheguei a escrever um artigo, citado por um ministro no julgamento do mensalão. O argumento é o seguinte: discutir sobre a prescrição do crime de caixa 2 em embates eleitorais é uma questão estritamente jurídica. Agora, por favor, não alegue que é caixa 2 sorrindo. Diga que é caixa 2 pedindo desculpas, de forma penitente, se autodenunciando. Com que cara vai chegar um auditor fiscal em uma empresa e denunciar “Olha, o senhor aqui cometeu caixa 2”? O empresário vai dizer: “Ah, meu caro, isso, como dizem as autoridades brasileiras, é um mero caixa 2”.
E hoje nem dá para se dizer que foi caixa 2. Está até pior.
Claro. Há, portanto, uma crise moral. Para usar a conhecida expressão de Hannah Arendt, é uma espécie de banalização do mal. Caixa 2 não é nada demais, isso é comum. Em eleição é assim, tudo pode, a gente faz até o que o diabo não sabe. Aí você junta a crise moral com a crise política, que não nasceu hoje — o Brasil não tem estruturas políticas robustas. Combina tudo isso com uma sucessão de erros econômicos inacreditáveis. Veja a energia elétrica. Todo mundo não disse que a política estava errada? Por que conter o preço da gasolina por tanto tempo? Somente para fazer política? Criou-se uma situação dificílima. A conta chega. De quem foi essa ideia de jerico de mudar o sistema de exploração de petróleo? Eu disse num artigo: explore logo senão você vai perder oportunidade. Não exploraram. Agora o pré-sal acabou. Com o preço do barril abaixo de US$ 40, não tem tecnologia que resolva, porque perdeu qualquer competitividade. Então é muita incompetência, incompetência cavalar.
Mas é só incompetência?
Não subestime a incompetência, que é um negócio sério (risos). Quando entra em campo, é um desastre. A combinação de arrogância com a ignorância é um fenômeno cósmico.
A combinação de arrogância com ignorância é que está deixando as coisas se agravarem?
Encaminhamos, de forma inédita, uma peça orçamentária com déficit primário, cuja dimensão verdadeira é revista, para maior, a cada momento. Veja bem que o déficit não incorpora os impressionantes restos a pagar, os precatórios não honrados, os créditos fiscais acumulados e não restituídos, as dívidas não contabilizadas com instituições financeiras oficiais decorrentes das pedaladas, etc.
O senhor já disse que a raiz de todos os problemas de corrupção está nas emendas parlamentares. Ainda é assim?
É uma das raízes do problema. Enquanto existir emenda parlamentar, você só precisa definir o nome do próximo escândalo. Não tenha dúvida. A outra é o aparelhamento da máquina pública. O afilhado só guarda compromisso com o padrinho e nunca com o interesse público. Faz qualquer coisa para se manter no cargo.
Já passou por esse tipo de problema?
Malan me chamou e disse: “Everardo, queria que você assumisse a Receita”. Eu disse: “tenho uma condição. Só uma. Muito simples. Ninguém será indicado politicamente na Receita. Essa foi sempre a minha regra. Não aceito indicação de ninguém”. Malan disse: “Isso é óbvio”. O presidente Fernando Henrique respaldou essa decisão.
Mas a Receita Federal tem de ser uma área totalmente técnica.
Mas não era! Era muito loteada. Não posso dizer os nomes porque a maioria está viva. Mas guardei os papéis. Fulano indicado por Beltrano. Eu disse: “Vou sanear”.
O clima hoje no país de insegurança é geral?
Como disse o assessor ao ser perguntado pelo chefe bravo, “a situação está meio péssima” (Risos). O negócio está tão confuso que acontecem coisas curiosas. Hoje (quarta-feira), às 10h30, me ligou o secretário-geral do Senado, dizendo: “Olha, ontem o senador Renan Calheiros tentou ligar para o senhor….” Respondi: “Sim, do que se trata?” E o secretário respondeu: “Era para convidar o senhor a integrar uma comissão de juristas da desburocratização.” Eu disse: “Sim. E pra quando é isso?” O secretário disse: “A portaria já saiu” (Risos). Eu achei aquilo meio esquisito… me convidam para um negócio para qual já fui nomeado. Aí disse: “E quando é a posse?” Resposta: “Daqui a uma hora”. Eu disse: “Homem, é o seguinte: sem querer fazer trocadilho, mas, para uma comissão de desburocratização, até para ela está um pouco acelerado!” (Risos)
O senhor já escreveu que reforma tributária é um frasismo. É possível uma reforma tributária?
Como dizia De Gaulle, na biografia escrita por André Malraux, desde a Grécia Antiga — vamos lá longe —, as reformas sempre foram tomadas como discursos, e como manobras diversionistas. No Brasil, gostamos muito dessa retórica, na melhor tradição ibérica. A reforma tributária mais poderosa do Brasil foi a de Castello Branco, em 1965. Isso evidencia que reformas abrangentes só são viáveis em caso de ruptura institucional, em caso de guerra. Reformas abrangentes não se operam em condições normais.
Por quê?
Porque sistema tributário não é um modelo que se faz em uma prancheta, que você faz um download. Sistema tributário é produto de conflitos. Quem faz sistema tributário é o parlamento, não os tributaristas, sempre no âmbito de conflitos de razão e de interesse. Fazer uma reforma abrangente é maximizar os conflitos que resultam em impasses.
Ou seja: quanto mais abrangente, menos viável.
É verdade. A despeito disso, repetimos as iniciativas. Sobre nós incide o mesmo conceito que Talleyrand fazia sobre os Bourbons: eles nunca esquecem e nunca aprendem. Temos que testar erros novos. (Risos)
Não existe um sistema tributário ideal?
Não. Modelos tributários são sistemas culturais. Respondem à história de um país. Vou dar exemplos bem concretos. O IVA (Imposto sobre Valor Agregado) é uma forma de tributação que existe em 150 países, sendo sufragada por todos os países desenvolvidos. Só há uma exceção: Estados Unidos da América. Repare que exceção! Por que os EUA não adotam o IVA? Porque iria gerar uma enorme querela federativa e para os americanos a federação é um valor inalienável, especialmente quando se tem em conta sua autenticidade decorrente da natureza contratual. Lá, as ex-colônias se reuniram e constituíram uma federação, ao contrário do nosso “pacto federativo”. Vocês conhecem o decreto número 1 da República? É engraçadíssimo. Diz assim: “O governo provisório do Marechal Deodoro da Fonseca expede o seguinte decreto. Artigo 1°: ficam criadas, em caráter provisório, a República e a Federação”. O nosso “pacto” foi constituído por decreto.
Mas o Brasil precisa de uma reforma tributária e política ou de uma mudança no comando do país?
Não. São coisas bem distintas. As reformas mudam as estruturas. O comando político é circunstancial. Podemos trocar seguidos presidentes e ter a mesma estrutura, ou ter diversas estruturas com um só presidente. As duas coisas são independentes.
Sim, mas veja: a população, os empresários e, oportunamente, os políticos dizem que ninguém aguenta mais aumento de carga tributária…
Carga tributária não tem nada a ver com reforma tributária, que é uma mudança nos parâmetros do sistema tributário. Reduzir carga tributária é tarefa muito simples. Basta reduzir a alíquota. A carga tributária brasileira é alta? Não é alta nem baixa: é do tamanho da despesa. Se você gasta mais, a carga tributária vai atrás. Ela é subalterna da despesa. O que o Brasil gasta em educação, com proporção do PIB, é maior do que a média da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). E a educação brasileira não é bem ruim. É muito ruim.
Quer dizer que o Brasil não arrecada muito. Ele gasta mal?
Gasta mal e gasta muito. Agora, quando se vai postular um aumento de carga tributária é preciso ser transparente. Por exemplo, vamos aumentar a carga tributária porque decidimos ampliar o programa da bolsa família ou porque vamos cobrir o déficit fiscal constituído nos últimos anos. Sem transparência, qualquer pretensão de aumento da carga tributária é ilegítima.
Dependendo do momento… por isso parece um despropósito falar em CPMF no momento em que se fala tanto em corrupção.
É exatamente isso o que quero dizer. Aumento de carga tributária para roubar, não!
Isso não é só uma realidade em relação ao governo federal. Os estados também estão com essa dificuldade.
Estão. Tem estados que já não pagam mais os compromissos mínimos. Pelo que tenho visto, é o caos.
O senhor foi secretário de Fazenda do DF. Acompanha a situação local? É grave?
Grave, não. Gravíssima. Aqui nós temos um problema sério. Agora penso que esse problema sério — ou qualquer outro — começa a se resolver com uma atitude indispensável: diga o que está acontecendo. Seja transparente. Conte: o problema é esse. O governo diz que está com problemas, presumo que esteja. Mas tem um diagnóstico claro da situação? Não vi.
A população não entende. Não temos noção do tamanho do rombo no DF.
Mas isso tem de ser dito com precisão. Se você não sabe qual é a causa da enfermidade, é muito pouco provável que seja capaz de apontar o remédio. A propósito vi algumas coisas que têm um traço claríssimo da velha demagogia que conheço há muito tempo, do tipo “Vamos aumentar a carga tributária do ICMS sobre produtos tidos como supérfluos e reduzir a de remédio”. Que bobagem. Consegui reduzir a carga tributária dos remédios no DF com uma regra draconiana. Era secretário de Fazenda daqui. São Paulo apresentou uma proposta para redução do ICMS sobre preservativos masculinos. E me insurgi contra. Disse: “Sou contra porque o que mata brasileiro não são as DST. O que mata o brasileiro é diarreia. Vamos começar com os remédios para diarreia?”
E o que aconteceu?
Apresentei uma contraproposta: redução de ICMS de todos os medicamentos, incluindo não só os preservativos masculinos, mas também os contraceptivos femininos e as vacinas. Todo mundo é contra. Aí eu vetei a proposta original. Depois disso, fui procurado pela associação comercial, que veio me elogiar aqui e propôs: “Se o senhor bancar isso, nós baixamos o preço dos remédios”. Formamos uma comissão, que concluiu que a redução do ICMS para 7% resultaria em queda de 14% no preço dos remédios. Disse aos empresários: “Vocês topam?” Eles resistiram, mas toparam. Aí eu disse: “Tenho uma surpresa para vocês.” Fiz entrar na sala o promotor de direitos do consumidor e anunciei que ele havia elaborado um termo de ajuste de conduta para ser assinado por todas as farmácias de Brasília. O termo dizia que a alíquota caía para 7%, os preços dos remédios caíam 14%, e quem descumprisse receberia uma multa diária de R$ 10 mil. Esse documento ficava exposto em todas as farmácias. Aí conseguimos amarrar tudo. Foi a única vez que deu certo.
E desta vez é demagogia por quê?
Porque aumenta tão somente a margem de lucro na cadeia de medicamentos.
Agnelo e Rollemberg ficam há nove meses nesse jogo de empurra sobre o rombo do GDF. Tem como descobrir quem está falando a verdade?
Tem. É fazer uma auditoria, e não precisa ser complexa. Mas não é só para saber se o rombo é de R$ 1 bilhão ou R$ 2 bilhões, mas conhecer sua razão de ser. É preciso entender a gênese do número. Tem como fazer isso. O órgão que deveria fazer isso tem nome e sobrenome: é o Tribunal de Contas, que reúne qualificação e experiência para a tarefa.
Mas muitas vezes o técnico auditor do tribunal conta um número, e o político diz que não é bem assim…
O Tribunal de Contas constitui uma comissão de auditoria para apurar e informar a sociedade. Não se trata de julgamento. Está fazendo uma fotografia.
Falta isso em Brasília, não?
É fundamental. Não para dizer se houve ou se não houve improbidade, se houve ou se não houve malversação. A auditoria é para simplesmente dizer o seguinte: nós temos uma conta de tanto, temos uma despesa de tanto, por isso aconteceu. A sociedade tem que saber isso.
Ela quer saber isso.
Eu cheguei a pensar em escrever um artigo que fale sobre isso. O título seria Brasília decadente.
Por que ela está decadente? Já estava antes?
Basta andar pelas ruas. Brasília está crescentemente decadente. As calçadas são atentatórias à circulação de quaisquer pessoas. Tenho dois amigos que estão com problemas sérios de saúde porque caíram em calçadas.
A gente chegou a essa situação de decadência por quê?
Corrupção, politicagem. Criou-se uma miríade de secretarias e regiões administrativas para abrigar indicações políticas. Tudo sob a égide da politicagem, que exclui o interesse público. O que importa é saber qual cargo fica para fulano, quem toma conta disso ou daquilo. Isso tem nome: corrupção.
Muita gente comenta que, com o Fundo Constitucional e a renda per capita tão acima da média, a receita do DF é muito alta para se estar nesta situação.
Isso é verdade. Devo dizer que concorri muito para a apoiar o Fundo Constitucional, ainda quando era secretário de Fazenda do DF. Foi concepção minha, com apoio do Correio Braziliense e empresários importantes. Fizemos vários seminários para debater a proposta. Eu vivi a humilhação de todo mês ter que pedir dinheiro à Secretaria do Tesouro Nacional.
É terrível.
Era preciso ter alguma coisa que desse previsibilidade e segurança. Quando deixei a Secretaria da Fazenda, o DF não devia a ninguém. Já quando entrei, levei um susto!
Como estava a situação quando o senhor entrou?
Entrei dia 30 de novembro de 1991. Olhei e disse: aqui é um paraíso! No dia 8 ou 9 de dezembro, descobri que era o caos! Não tinha dinheiro para pagar a polícia. Me perguntava: como é que ficou isso?? Não era só dinheiro; não havia orçamento. E o recesso do Congresso era dia 15 de dezembro! Saí feito um louco negociando no Congresso para conseguir a abertura de crédito suplementar. Negociei com os policiais, dizendo: “Olha, o problema é esse, não fui quem o criou, mas vou resolvê-lo. Agora quero a colaboração de vocês.” E eles deram.
É a transparência.
Claro. E você ganha credibilidade com essas pessoas. Fiz isso, e assim conseguimos. Aí comecei a apertar. Adotei a seguinte regra: não se gasta um centavo se não tiver a correspondente receita, no caixa. Aqui não se faz empréstimo. E então ia arrumando a casa, fazendo as coisas funcionarem, motivando as pessoas, colocamos várias empresas em regime de fiscalização especial. Quando chegou no final do governo, em 1995, fui para a Receita. Saí um dia aqui do GDF e assumi o outro cargo lá. Deixei o DF com dinheiro em caixa, o mesmo que fiz em Pernambuco, quando deixei a Secretaria da Fazenda.
Essa passagem no Recife foi bem antes, não?
Sim. Aliás tem uma história bem interessante. Quando deixei a secretaria de Fazenda de Pernambuco em 1982 ou 1983, coloquei um edital convocando quem tivesse algum crédito não pago do estado a comparecer à tesouraria.
Hoje ia chover gente (risos).
Bem provocativo, não? Pois não teve ninguém na fila. Aqui no DF, queria fazer uma coisa, mas alguém mais prudente e sábio me advertiu para não fazer. Ia publicar no Diário Oficial a minha declaração de renda no ano que entrei e no ano que saí. Mas alguém me chamou e disse: não faça isso. Está completamente errado. Perguntei: mas onde está o erro? E, mais uma vez, Marco Maciel me aconselhou: não faça isso. Porque nem todos podem fazer e você vai virar inimigo mortal dessas pessoas (risos). Vai parecer arrogância. Desisti.
O senhor saiu e Cristovam Buarque assumiu o GDF.
Sim. Anos depois, Cristovam me disse: Everardo, o responsável pelos problemas que tive no governo foi você. Eu disse: por quê? O que fiz de errado, me explica? Ele disse: porque você deixou com tanto dinheiro que pensei que era a coisa mais fácil do mundo (risos).
Gasta-se muito também nos estados?
Aqui? Muito. Existe coisa mais acintosa, mais afrontosa do que esse estádio? É um monumento ao desperdício, uma coisa absurda.
Por que o senhor diz que a Operação Zelotes não atinge a Receita?
Não conheço as ilicitudes dessa história, nem quero saber. Mas alguns me procuram e digo: há uma enorme confusão de conceitos. Houve uma perda da Receita por prática de corrupção, digamos de R$ 16 bilhões? Isso é falso. Por quê? Estamos falando de corrupção no julgamento. Mas é preciso compreender como é que funciona a administração fiscal. A administração faz o lançamento de um auto de infração, e você se defende. Mas isso não é um crédito. Apenas depois de julgado é um crédito. E, quando isso vai ser julgado nas turmas e câmaras, dizem que houve corrupção. Essa corrupção pode ter afetado o julgamento. Não tem como dizer que sim ou que não. Se afetou pode implicar a anulação do julgamento. Mas isso não quer dizer que o auto de infração é procedente ou improcedente. Isso é outro assunto.
O povo do governo pede conselho?
Discretamente. Alguns querem celebrar em contrato. Respondo: “Assinar contrato para permitir que digam que estão me pagando? Deus me livre!”