ConJur – 30/08/2015
Por Marcelo Galli
Apesar de avanços por causa das novas leis de acesso à informação, falta transparência aos órgãos públicos brasileiros, inclusive os tribunais de Justiça. A avaliação é do advogado, jornalista e cientista político Murillo de Aragão. Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, ele analisa que “a grau de opacidade ainda é elevado por conta da evidente supremacia do Estado sobre a sociedade”.
Aragão afirma também que é preciso ampliar a transparência “de modo radical” para reduzir casos de corrupção. “O Estado ainda está sequestrado pela burocracia, pelo corporativismo profissional e pelos interesses específicos”.
Para o cientista político, a operação “lava jato”, que investiga desvio de verbas da Petrobras, é “plena” de significados porque poderá alterar o funcionamento das relações entre empresas e governo e a intermediação de políticos. Ele diz que o modelo de financiamento de políticos e partidos a partir do ganho de obras públicas “está em cheque”. “Empresas vão ser punidas se continuarem a atuar dessa forma. Serão maiores os níveis de governança das empresas públicas e privadas”.
Aragão é presidente da Arko Advice Análise Política e Pesquisas e sócio de um escritório de advocacia. Autor dos livros Grupos de Pressão no Congresso Nacional (Maltese, 1992) e Reforma Política – O debate inadiável (Civilização brasileira, 2014), o advogado também assina regularmente textos como articulista para os jornais O Estado de S. Paulo, O Globo, O Tempo e O Liberal, além do Blog do Noblat.
Leia a entrevista:
Conjur — Como analisa o grau de ideologização política hoje no Brasil? Há paralelo com algum país vizinho como Argentina, Venezuela, Bolívia ou outros?
Murillo de Aragão — O Brasil é muito diferente dos vizinhos. Temos um sistema político e econômico mais sofisticado, uma razoável institucionalização e desejo claro por mantê-la. Nosso establishment político, econômico, acadêmico e sindical é, majoritariamente, a favor da democracia representativa. Estamos alguns estágios à frente de nossos vizinhos.
ConJur — O Palácio do Planalto hoje é mais transparente do que nos governos anteriores? E os tribunais?
Murillo de Aragão — Sim, por conta das novas leis de acesso à informação. Mesmo assim, considero que o grau de opacidade ainda é elevado por conta da evidente supremacia do Estado sobre a sociedade. Temos que ampliar a transparência de modo radical, é o caminho para reduzir os escândalos de corrupção. O Estado ainda está sequestrado pela burocracia, pelo corporativismo profissional e pelos interesses específicos.
ConJur — O Judiciário pode ter preferência política?
Murillo de Aragão — Não deve. Porém, evidentemente que o juiz, como ser humano, pode ter suas preferências que terminam contaminando sua visão de mundo e suas decisões. Cabe ao sistema neutralizar a indevida interferência das preferências políticas nos julgamentos, bem como evitar a prevalência do sentimento corporativista que trabalha contra o interesse da cidadania.
ConJur — Cabe ao Judiciário dizer em que sentido deve caminhar uma sociedade? E ao Supremo Tribunal Federal?
Murillo de Aragão — O Judiciário deve zelar pela aplicação da lei e garantir que todos sejam iguais perante ela. O caminhar da sociedade é mais amplo, envolve costumes, cultura, o momento e as circunstâncias, além das interferências dos demais Poderes nos processos deliberativos. O Supremo, simplesmente, deve ser o guardião da Constituição e assegurar a sua integral vigência. Sem, entretanto, deixar de estar sintonizado com a evolução dos costumes na sociedade.
ConJur — O Judiciário tem menos legitimidade do que os outros Poderes, por não ter membros eleitos?
Murillo de Aragão — O Poder Judiciário tem ampla legitimidade. Por exemplo, a escolha dos ministros do STF passa pelo crivo da maioria dos senadores após a indicação do presidente da República. Não é um processo banal. Temos uma longa tradição republicana de escolha dos membros de nossas cortes superiores.
ConJur — O populismo e a demagogia se tornaram vetor principal da decisão judicial?
Murillo de Aragão — Evidente que existem distorções, algumas vezes temos a impressão de que a decisão vem contaminada pelo ambiente midiático. Mas, de modo geral, quando nos referimos às altas cortes, vemos decisões equilibradas e mesmo isentas de pressões indevidas. O julgamento do ‘mensalão’ é um exemplo. O poder político não conseguiu neutralizar o alcance e a força das decisões. Sem a independência verificada no mensalão, não teríamos o petrolão.
ConJur — Como assim?
Murillo de Aragão — O mensalão puniu políticos e seus comparsas no mundo privado. Ficou claro que o sistema político não conseguiu proteger os agentes privados que foram severamente punidos. Alguns até em excesso. Ficou a lição. Daí o volume de delações no âmbito do petrolão. Ficou a certeza de que o sistema político não protege e que a Justiça pune. “Melhor fazer acordos” foi o raciocínio que influenciou as delações.
ConJur — Dá para esperar mudanças estruturais a partir da conclusão de uma investigação criminal?
Murillo de Aragão — O mensalão trouxe significativas mudanças no comportamento do sistema político. Sem as condenações naquele processo não teríamos as delações na ‘lava jato’. São mudanças importantes. Importante ressaltar que a “lava jato” já está causando mudanças nos comportamentos do setor privado e suas relações com partidos, governo e empresas públicas. Nada será como antes. As repercussões da operação que apura desvios de verbas da Petrobras no comportamento político serão intensas e transformadoras.
ConJur — As delações premiadas da “lava jato” revelam uma dinâmica de fazer negócios e se relacionar com a coisa pública de uma parcela mínima da população? Ou é um retrato de como particulares interagem com a coisa pública em todos os níveis econômicos e sociais?
Murillo de Aragão — O que está sendo desvendado pela “lava jato” é uma forma corrompida de se fazer negócios entre grandes fornecedores e o governo, tendo partidos e políticos como intermediários. Não funcionará assim daqui em diante. A fórmula foi a base do capitalismo tupiniquim até aqui. As negociatas nos contratos públicos vão ser reduzidas. Nos extratos inferiores da economia, a relação corrompida ocorre por conta da supremacia do estado sobre a sociedade, da pouca consciência da cidadania de como exercer seus direitos, da imensa opacidade no funcionamento da maquina pública do país, entre outras razões.
ConJur — É legítimo a quem toca inquéritos e investigações esperar que o resultado seja uma mudança social?
Murillo de Aragão — Sim, desde que não se perca de vista o marco legal. A Justiça deve ser feita a partir das normas e regras e não a qualquer preço, aí nesse caso deixa de ser Justiça. Porém, um juiz esclarecido sabe que certas decisões têm alcance social relevantes. O que importa é que as decisões sejam bem fundamentas.
ConJur — Qual é o aspecto mais relevante da “lava jato”?
Murillo de Aragão — A operação é plena de significados importantes. Destaco, no momento, um deles: a alteração no funcionamento das relações entre empresas e governo e a intermediação de políticos. O modelo de financiamento de políticos e partidos a partir do ganho de obras públicas está em cheque. Empresas vão ser punidas se continuarem a atuar dessa forma. Serão maiores os níveis de governança das empresas públicas e privadas.
ConJur — Que peso tem o clamor público nas decisões judiciais?
Murillo de Aragão — Às vezes é muito relevante por conta da repercussão que a mídia pode dar a determinado caso. Não deveria ser assim. Mas estamos tratando de seres humanos que estão sujeitos às influencias externas.
ConJur — O Judiciário virou o poder moderador da República?
Murillo de Aragão — No que toca à reforma política, sim. Muitas das grandes decisões no âmbito da reforma política estão ocorrendo a partir de decisões do Tribunal Superior Eleitoral e do STF. Por exemplo, a imposição da fidelidade partidária para eleitos pelo sistema proporcional. O poder político não admite vácuo. Na omissão do Legislativo, algumas vezes vemos o Judiciário ocupando espaços.
ConJur — De acordo com o ministro Luís Roberto Barroso, a culpa pela “judicialização da política” é mais do Congresso do que do Judiciário. O senhor concorda?
Murillo de Aragão — Concordo com o ministro. Volto a falar da reforma política. As lacunas deixadas na legislação eleitoral e partidária e a recorrência de escândalos de corrupção com vinculação ao sistema partidário causam a intensificação do papel do Judiciário na cena política. São efeitos colaterais do amadurecimento institucional do Brasil. Não é o ideal, mas seria pior sem a atuação do Judiciário em questões políticas.
ConJur — Falta aos magistrados brasileiros conhecimento da realidade brasileira?
Murillo de Aragão — De modo geral, não. Acho que a forma de ascensão profissional na magistratura exige um relevante conhecimento de nossa realidade. O mesmo vale para o Ministério Público. Temos juízes e promotores bem preparados e cientes do que se passa em nosso país. As investigações e decisões preliminares da operação “lava jato” são prova disso.