Um dos principais chavões da jurisprudência sustenta que decisão judicial não se discute, cumpre-se. A nova contenda entre STF (Supremo Tribunal Federal) e Senado reacende o debate em torno do preceito tido como pétreo.
De um lado, uma Corte que outra vez transforma o verbo julgar em legislar. Do outro, um Legislativo permissivo e coalhado de meliantes do erário, conforme denuncia a Lava-Jato.
Como os parlamentares, de um modo geral, são considerados culpados até que provem o contrário, a tendência é aplaudir a sentença judicial. Ou seja, de acordo com o STF, o senador Aécio Neves (PSDB), flagrado em malfeitos a mancheias, deve ser punido antes do devido processo legal.
No caso, ter o mandato suspenso e recolher-se à residência no cair da tarde. Poderia ser uma decisão corriqueira não fosse ele parlamentar. Com ela, o STF criou uma punição inexistente (a suspensão do mandato) e enviesou o artigo 53 da Constituição (cabe ao Legislativo autorizar a prisão de seus membros).
Sentença criativa
Não é a primeira vez que a Corte Máxima se vale de sentença criativa. Foi assim com o senador Delcídio Amaral (PT), líder do governo Dilma Rousseff, Eduardo Cunha (PMDB), presidente da Câmara dos Deputados, e Renan Calheiros (PMDB), presidente do Senado.
Talvez nenhum caso tenha sido tão emblemático quanto o de Renan. Eleito três vezes deputado e três vezes senador, ele dispunha da legitimidade do voto quando foi afastado da presidência da Casa por liminar do juiz Marco Aurélio Mello.
Além disso, chegou à presidência do Senado pelo voto dos colegas – quase todos eleitos. Portanto, havia sido referendado duplamente: pelos eleitores e por senadores.
Marco Aurélio deve seu cargo vitalício ao lobby indispensável para chegar a um tribunal de justiça (conforme revelou a juíza aposentada Eliana Calmon, ex-STJ) e ao parentesco com o presidente que o nomeou. Enquanto isso, desde 1979, Renan precisa correr as Alagoas e pedir votos se quiser seguir parlamentar.
Os 11 juízes do STF são praticamente inalcançáveis à maioria dos cidadãos. No Executivo, igualmente, o acesso a seus membros é deveras restrito. Já deputados e senadores são membros do Poder mais permeável à cidadania.
Nada disso intimidou o ministro sem votos a tentar afastar um chefe de Poder. Liminarmente. A aberração foi tamanha que o Senado resistiu e o STF recuou.
A fragilidade crônica do Legislativo, ampliada pelas descobertas da Lava-Jato, e do Executivo, acossado por denúncias sucessivas, parece ter despertado no STF um voluntarismo legiferante. Não contentes com a hermenêutica, seus membros propugnam a sentença criativa.
O juiz Luiz Fux decidiu sozinho que votação plenária da Câmara não foi válida e determinou que os deputados refizessem o que entendeu foi mal feito. Sua vontade valeu mais do que o conjunto dos deputados.
A partir de voto do juiz Roberto Barroso, o STF proclamou que o aborto (proibido em nossa legislação) é legal até o terceiro mês de gestação. Ou seja, como se o Congresso Nacional fosse obrigado a votar, ministros sem voto inovam a legislação.
Despiciendo para aqueles juízes que cerca de 8 entre 10 brasileiros se oponham à legalização do aborto. O que, aliás, explica porque parlamentares não aprovam esta liberalidade.
“Gambiarra interpretativa”
Se os eleitores quiserem, ano que vem podem mandar de volta a seus estados Aécio e Renan. Basta não votar em ambos.
Já com os onze ministros do STF não tem jeito. Vão continuar em Brasília na luxuosa e confortável sede do Judiciário tagarelando como lavadeiras à beira do rio – mas, diferente destas, constrangendo o País todo.
Melhor faria o Supremo se julgasse processos há tempos acumulando poeira. Em vez de decisões provisórias, que tal pautar antigas acusações contra parlamentares? Entre elas, o incrível caso do senador Ivo Cassol condenado à prisão pelo próprio STF em 2013, mas ainda solto.
Juízes julgam, não criam leis. Das leis cuidam os parlamentares. De outra forma, adote-se a reciprocidade. Se juízes podem fazer leis, parlamentares podem rejeitá-las. E estabeleça-se a algaravia institucional.
Caso o Senado decida pela readmissão de Aécio à Casa estará reagindo a um STF voluntarioso e boquirroto, dado a “invencionice jurídica”, como qualificou o Estadão em editorial. Além disso, pode invocar o artigo 53 para desfazer a “gambiarra interpretativa”, nas palavras de dois professores da FGV.
A sentença da Corte Suprema, com a eventual reação senatorial, fere a independência e a harmonia entre os poderes estipulada no artigo 2º da Constituição. Enveredar para uma república de magistrados, além de não ser democrático, é perigoso.