Uma das formas de acabar com as escaramuças em torno da exposição Queermuseu, patrocinada e depois cancelada pelo Santander, em Porto Alegre, é decretar a proibição de protestos. Subverter-se-ia os versos de Caetano Veloso no redivivo 1968, cujos ecos são cada vez mais sonoros.
Acostumado a bater, o movimento que tomou a frente dos protestos contra provocativa arte contemporânea exposta aos viventes gaúchos apanhou bastante. Desta vez, no entanto, uniu a esquerda conservadora e porções da direita liberal.
De um lado, uma multidão anônima nas redes sociais em apoio ao boicote à exposição. Do outro, coro de vozes ampliado pela intelectualidade e mídia militantes.
O escarcéu deste último grupo teve maior alcance. O ataque predominante taxou a atitude do movimento como “censura”. Certamente não experimentaram as tesouras dos censores da ditadura militar, aquela que não admitia contestação.
Censura, na acepção que foi empregada, é ato de força. Ato de força não houve; houve protesto e estímulo ao boicote.
Ocorre que “protesto” e “boicote” são terminologia sem conotação negativa. Já “censura” remete a regimes de força, arbitrários. Prevaleceu o discurso ambidestro, segundo o qual, a depender da origem, protestar passa a ser censurar.
Autoritarismo liberal
Em meio à miríade de análises sobre o sucedido, a escrita pelo economista Joel Pinheiro da Fonseca (“Autoritarismo liberal”, na versão impressa) descreve um elo comum entre o que ainda alcunhamos, por falta de definição mais precisa, de esquerda e de direita. “A direita aprendeu direitinho com a esquerda como fazer militância agressiva”, escreveu.
O autor, “libertário” e “de direita”, sugere em tom crítico que o MBL adotou as práticas há muito conhecidas da esquerda. “A mesma esquerda que faz protesto contra filmes, livros, músicas e até piadas consideradas ofensivas agora prova do seu próprio veneno”. Bingo.
O PT, condutor da esquerda brasileira e adversário figadal do MBL, nasceu com três características vistosas: (1) convicções arraigadas e definitivas, (2) atávica capacidade de mobilização e (3) combate intransigente à corrupção. Tirante esta última, que virou letra morta, as outras duas rebrotam com intensidade agora que as ruas e o Parlamento forçaram o caminho de volta à oposição.
Se a concepção da gestão de Estado posiciona ambos nos extremos ideológicos, o modus operandi os aproxima. Fazer barulho e criar celeuma em cima de crenças irretorquíveis de seitas partidárias.
O desconforto dos que se incomodam com quem se incomoda com a dita arte contemporânea resvala para a intransigência e, por vezes, o autoritarismo. O direito que artistas engajados têm de provocar e transgredir é o mesmo de quem se sente ofendido de rebater o conteúdo que considerem ofensivo.
Democracia encruada
Em vez de desfazer do boicote, os críticos dos críticos deveriam valer-se da polêmica gerada pelo confronto de visões para aprofundar o debate – sem desqualificações erigidas em palavras de ordem vazias. Afinal, ela gerou visibilidade e debate em rede.
A arte exposta em Porto Alegre perturbou os ânimos de multidões? Mas não é isto que almeja a arte engajada?
Basta, então, empacotar as telas e realocá-las noutro lugar. De preferência, sem patrocínio do contribuinte.
Não se duvide de que multidões acorrerão aos salões expositores. Para novas vaias e loas. Democraticamente.
A velha direita, engravatada e envergonhada, deu lugar a uma nova, debochada e escancarada. Assim como a esquerda assume com desenvoltura suas concepções, a nova direita não tem medo de ser direita.
Persistir na desqualificação pobre e repetitiva, além de nada acrescentar ao confronto entre duas visões representativas de nossos tempos, privará o eleitor do debate pautado pela razão, produto rarefeito em terras brasilianas.
Melhor o debate pela força das ideias do que pela lâmina afiada das baionetas. Quem experimentou o infortúnio dos autoritarismos sabe a dor lancinante que elas provocam.