Com a investida do neoliberalismo sobre o Estado de bem estar social, o debate acerca da crise da democracia representativa e da distinção entre democracia representativa – procedimental, institucional ou formal – e a democracia substantiva se intensificou no Brasil e no mundo.
A principal diferença entre ambas é que a primeira (democracia representativa) se limita aos princípios abstratos, como regras processuais e formais sobre a constituição e a organização do poder, enquanto a segunda (democracia substantiva) se propõe a dar concretude aos seus enunciados, regulando os fatos jurídicos relacionados a bens e utilidades da vida.
A democracia representativa ou formal observa prioritariamente os princípios relativos à organização do exercício do poder político e, no limite, alcança os direitos civis (direito à vida, à liberdade, à propriedade, de igualdade perante a lei, de ir e vir, de expressão e pensamento, etc) e os direitos políticos (direito de votar e de ser votado, de associação, de manifestação e de fundar e participar de partido político, etc ).
Já a democracia substantiva, que se confunde com a ideia de justiça social, além dos direitos civis e políticos, estende a influência do cidadão à formulação e implementação das políticas públicas e à definição das prioridades do orçamento público, dando concretude também aos direitos materiais, especialmente os sociais, econômicos e culturais.
A desigualdade, nos países capitalistas, é brutal e, num cenário desses, não há regime político democrático que se sustente cuidando apenas das liberdades e da forma de exercício do poder. É preciso ir além e optar pelo favorecimento à maioria do povo, notadamente a maioria vulnerável ou mais pobre da população.
Afinal, o cidadão – que é a fonte do poder – não está mais disposto a aceitar como ética um tipo de democracia (no caso a formal ou procedimental) que busca apenas o apoio, o voto e a legitimação do exercício do poder, sem qualquer compromisso com o atendimento de suas necessidades, aspirações e demandas.
Nesse mundo dominado pela financeirização da economia e pelo individualismo, o que tem acontecido é que muitas vezes o eleitor que legitima o regime político se constitui na principal vítima da agenda adotada pelos titulares dos poderes eleitos, numa completa inversão de valores ou manipulação de vontade do eleitor.
As contradições do sistema são de tal ordem que sequer a democracia participativa é admitida, já que o cidadão passaria a ser consultado (via plebiscito, referendo e iniciativa popular) sobre as políticas públicas, a destituição de mandatos (recall) e também haveria formas de accountability (prestação de contas), tudo isso facilitado pela comodidade e rapidez da rede mundial de computadores, a internet, e das redes sociais.
Por tudo isso é que a ideia de democracia substantiva faz todo o sentido na atualidade, especialmente neste mundo globalizado, no qual a chamada classe média alta e os ricos, quando ficam inseguros ou insatisfeitos em seus países de origem, após terem usufruído do Estado (estudando em universidades públicas) e acumulado recursos (explorando atividades lucrativas) ou adquirido direitos (aposentadoria, etc), por exemplo, simplesmente o deixam, comprando sua cidadania em outro país.
A democracia, portanto, precisa ir além dos procedimentos formais, constituindo-se num regime simultaneamente participativo e substantivo, que assegure a participação e proteja os mais vulneráveis da violência, do desemprego e das privações. Se não for comprometida com valores e garantidora de igualdade no acesso aos bens e necessidades básicas, como educação, saúde, segurança, transporte, alimentação e lazer, assim como com a efetiva participação da cidadania, não se sustenta.
(*) Jornalista, consultor, analista político e diretor de Documentação do DIAP.