A ficção do juiz neutro


O teratológico episódio envolvendo mais uma tentativa de soltar Lula da prisão expôs aquele quase consenso popular que se verifica em conversa de boteco. Ser e parecer neutro é virtude incomum entre juízes.

A rigor, a isenção é atributo inalcançável. Por humanos, juízes têm sentimentos, preferências e vicissitudes, bem como inclinações políticas, religiosas e filosóficas.

Além disso, magistrados são pagos para interpretar leis. Fossem as leis inequívocas, não necessitariam de interpretação.

Leis, como se sabe, são forjadas nos Parlamentos – noves fora o STF brasileiro, casa de legisladores bissextos. O Parlamento, por sua vez, é habitat dos políticos, autoridades declaradamente partidárias, portanto, parciais.

Assim, a suposta neutralidade judiciária – aqui entendida como a equidistância de tudo e de todos – estriba-se num regramento parcial, antônimo de isenção. De volta à conversa de botequim, pau que nasce torto morre torto.

Prazos ficcionais

Aos que descreem em filósofos ébrios, bastaria um olhar sobre o funcionamento da Justiça. Nenhum mecanismo interna corporis evidencia mais a impossibilidade do juiz neutro do que os prazos.

Sufetas, sabe-se, não têm prazos. Ou têm prazos ficcionais.

Na prática, qualquer magistrado pode acelerar ou retardar um processo como bem lhe aprouver. O condão de ser célere ou procrastinador desnuda qualquer manto de neutralidade.

Vejamos. O que dizer do juiz Luiz Fux, da Suprema Corte, que mantém há quase quatro anos trancada numa gaveta a decisão definitiva sobre o auxílio-moradia?

A benesse, que atende a casta privilegiadíssima dos magistrados, já depenou o erário em mais de R$ 5 bilhões. Dinheiro farto para quem já o tem a rodo.

O juiz Roberto Barroso, também do STF, proclamou que o aborto (proibido em nossa legislação) é legal até o terceiro mês de gestação – aparentemente dando vazão a convicções pessoais ou reclamos militantes. O voluntarismo legiferante foi de encontro à lei, ao Congresso Nacional (que tem o poder exclusivo de legislar) e à maioria dos brasileiros (que se opõe à legalização do aborto).

Se mesmo as sentenças arbitradas a partir dos autos, sem que o juiz conheça pessoalmente os envolvidos, são sujeitas à subjetividade interpretativa, quanto mais quando as partes são personagens públicos. Holofotes revelam com mais clareza paixões e rancores arraigados.

Favreto x Moro

No último fim de semana, o monstro da parcialidade despojou-se da roupagem de isenção, inflou suas ventas e arrostou o mito da justiça cega. Dois sufetas, Rogério Favreto e Sérgio Moro, protagonizaram cenas explícitas de pugilato político-jurídico.

Mais político que jurídico.

Favreto, em sentenças consideradas monstruosas pela juíza Laurita Vaz, do STJ, perfilou-se como soldado de uma causa. Tentou em vão libertar Lula, seu ex-comandante, do cárcere.

Moro, verdugo de meliantes do erário, arriscou-se num gesto de insubordinação para que não lhe privassem da presa predileta – o mesmo Lula que Favreto esmerara-se para soltar. Não foi a primeira vez que o sufeta de Curitiba avançou o sinal no encalço de maganos endinheirados – o que não lhe tira o mérito de liderar a Lava-Jato, marco legal que encarcerou larápios brancos, ricos e poderosos.

Enquanto isto, alheios ao solta-prende, 4 em cada 10 presos apodrecem nas masmorras de Cardozo, mesmo sendo provisórios e sem condenação. Ou convivem com ratazanas, como as presidiárias de Rondônia.

https://blogdapoliticabrasileira.com.br/os-ratos-da-lava-jato-e-o-apartheid-carcerario/

Jornalistas, como juízes

O jornalismo profissional, o que busca a neutralidade como princípio, adota regras para mitigar paixões viscerais nesses tempos de cólera que vivenciamos no Brasil. Jornalistas experientes sabem, no entanto, que inexistem redações isentas.

Como no jornalismo, o Judiciário tenta preservar aparências. Mesmo que seja para consumo próprio, propala a neutralidade e a equidistância como princípios basilares. Há casos, é certo, que juízes e jornalistas o fazem com sinceridade profissional.

Para aproximar-se da isenção, o juiz deveria ser capaz de julgar de acordo com a letra da lei mesmo contra sua convicção, crença ou preferência. É difícil, mas é supostamente para isto que todos têm salários fartos, férias a mancheias, vitaliciedade e independência funcional.

No mais das vezes, incentivos que, em vez de motivar a imparcialidade, liberam o monstro da arrogância. Afinal, a pena máxima para uma grave arbitrariedade será a aposentadoria compulsória.

Preocupar-se, então, com o quê? Alguém se lembra da juíza do Pará que manteve uma menina de 15 anos presa com 30 presos numa cela e seviciada por 26 dias?

Enfim, mesmo utópica, é preciso perseguir a isenção como princípio republicano. O que é plenamente dispensável são as juras de neutralidade quando é cristalino o viés político ou ideológico de uma sentença. Serve, vá lá, pra conversa de mesa de bar.

Postagens relacionadas

Institutos de pesquisa confrontam os likes do Twitter de Bolsonaro

Institutos de pesquisa confrontam os likes do Twitter de Bolsonaro

Possível liberação do aborto de fetos com microcefalia pelo STF é criticada na CAS

Usamos cookies para aprimorar sua experiência de navegação. Ao clicar em "Aceitar", você concorda com o uso de cookies. Saiba mais