Tá bom, entendemos o dilema das redes. E agora?

Artigo por Marcelo Bechara Hobaika*, publicado originalmente no Migalhas.

No clássico de Brian de Palma, “Os Intocáveis”, que se passa na Chicago dos tempos da Lei Seca, o policial Jim Malone, magistralmente interpretado pelo eterno 007 Sean Connery, para em frente a um grande armazém junto com o funcionário do Tesouro, Eliot Ness, e afirma: “Bem, aqui estamos”. Ness, sem entender nada, pergunta: “O que estamos fazendo aqui?” Malone então lhe responde: “vamos atacar as bebidas alcoólicas”. Ness, olhando para a delegacia do outro lado da rua questiona: “aqui?”. É quando o policial lhe esclarece: “Sr. Ness, todos sabem onde está a bebida alcoólica. O problema não é encontrá-la, o problema é quem quer enfrentar Al Capone”.

Esse trecho de um clássico da Sétima Arte não se propõe a comparar as grandes plataformas com um gângster sonegador de impostos, até porque a venda e o consumo de bebidas alcoólicas na Chicago dos anos 20 e 30 era ilegal e as redes sociais não são! A ideia é expor que existe um problema visível a todos e que precisa ser enfrentado. Logo ali, do outro lado da rua, bem ao alcance de olhos fixados nas telas sensíveis. Afinal, quando todos concordam é porque já estamos atrasados.

Ok, já sabemos que as redes polarizam e levam à violência. Ok, já estamos há muito cientes das bolhas de eco, bem como do modelo de engajamento que aprisiona usuários em conteúdos nocivos e que levam ao extremismo. Já sabemos também do poder dessas ferramentas de midia e propaganda em processos democráticos e o perigo de interferências externas com desinformação. Já conhecemos a cultura do cancelamento e a destruição de reputações. Também já entendemos que a publicidade online programática é o grande objetivo das grandes empresas de tecnologia a partir de coletas frenéticas de dados pessoais dos usuários por múltiplos serviços.

E agora, José? Diria o poeta.

Agora é preciso sair do mundo das desculpas, das boas intenções, das melhores práticas, das multas ineficazes, do envidar de esforços e cair na realidade. Nada disso se resolverá sem atuação do Poder Público. Sempre que leio artigos sobre o tema da desinformação, discursos de ódio ou o abuso de poder econômico e de informação raramente são concluídos com sugestões concretas de resoluções, salvo a educação midiática que é efetiva até a página dois e, ainda sim, requer ações de longo prazo. Isso tem mudado. Hoje alguns se atrevem a apresentar propostas. Sendo assim, vou me unir a eles e elas e buscar expor ideias assumindo o risco de tolices, exageros, desconhecimento técnico e imprecisões. Mas ainda sim farei.

Para isso, a primeira reflexão é a separação entre plataforma e aplicação. Como já pude manifestar em outro artigo “Concentração transversal na Economia Digital” a plataforma, mais do que uma tecnologia, é um modelo de negócios que cria valor, facilitando trocas entre dois ou mais grupos interdependentes. São empresas que não criam e controlam diretamente o inventário por meio de uma cadeia de suprimentos da mesma forma que as empresas lineares. As empresas de plataforma não possuem os meios de produção. Elas criam os meios de conexão, o que faz com que as plataformas escalem negócios múltiplos de maneira exponencial. O foco da plataforma é o crescimento da rede e o modelo de negócios é a própria concentração de dados. “Não temos melhores algoritmos do que ninguém; apenas temos mais dados”, admitiu o então cientista chefe do Google, Peter Norvig, no evento Zeitgeist de 2011. É para as plataformas conglomeradas transnacionais de tecnologia que devemos endereçar as soluções.

A segunda é uma mudança de eixo sob a perspectiva de usuário ou consumidor para produto. Produto é o resultado de características tangíveis ou não que é concebido do processo de construção, gestão e marketing para ser comercializado no mercado mediante valor em dinheiro, estimável ou troca, quando então passa a ser uma mercadoria. A condição de consumidores das redes sociais, serviços de mensagem e ferramentas de busca é mesmo de mercadoria.

A terceira é a constatação de que o conglomerado tecnológico global atua de forma ampla e altamente diversificada por segmentos, mas que funciona como uma orquestra sinfônica de dados. Comércio eletrônico, loja de aplicativos, rede social, geolocalização, serviço de e-mail, gestão publicitária, rastreamento, assistentes virtuais, analytics, equipamentos eletrônicos, streamings de áudio e video, games, mobilidade, meios de pagamentos, defesa, conexão, serviço de mensagens, serviços de saúde, acessórios fitness, sistema operacional de televisões e celulares, browsers, entretenimento, softwares de produtividade, ferramentas de busca e indexação, videoconferência, telecomunicações, aeroespacial, educação, empregos, viagens, alimentos, supermercados e serviços em nuvem na mesma estrutura empresarial não pode. Tem que separar! Até porque há um comprometimento da inovação com o seu aprisionamento em áreas vitais: saúde, educação, defesa, comunicação e comércio. As Big Tech são capazes de protagonizar o tal Capitalismo de Vigilância não porque são tecnicamente eficientes, mas porque são grandes. Isso nos leva ao elemento principal: tamanho.

Cumpridas essas três constatações, a medida central é a reversão de M&As que caracterizam a construção da concentração conglomerada de plataformas tecnológicas. Para isso, compete às autoridades de dados, consumeristas e especialmente de concorrência reconhecer não apenas o valor econômico dos serviços, sobretudo os gratuitos, mas dos dados coletados e a qualidade do que se entrega em contrapartida como moeda de troca. Feita essa analise, compete a adoção das medidas que estabeleçam a segregação das empresas. Em alguns casos, como recentemente disse a CMA, Autoridade de Concorrência e Mercados da Grã-Bretanha, de graça ainda é caro.

Alguns defendem que os dados coletados e processados por cada unidade de negocio da plataforma conglomerada não possam ser compartilhados, mas isso me parece de difícil fiscalização. Eu defendo que os dados coletados por esses grupos conglomerados globais, baseados em modelo de plataforma e que detenham poder de mercado, sejam necessariamente compartilhados com o seus concorrentes, sob o evidente olhar vigilante da autoridade de dados para que se crie um ambiente de competição em favor do usuário que passaria a ter poder de escolha e quem sabe voltar a ser o dono de seus desejos.

Os serviços de plataforma que detenham uma participação expressiva de mercado devem permitir a interoperabilidade. Um bom exemplo seria que os 3 maiores motores de busca do mercado revelassem necessariamente os resultados das ferramentas de indexação dos seus concorrentes de forma destacada na pagina do resultado permitindo que os usuários possam clicar em respostas diversas e com critérios de relevância distintos fornecidos por outros serviços de busca. Os usuários de serviços de mensagens das plataformas conglomeradas devem ter a opção de integrar os contatos de serviços distintos de mensageria, do mesmo modo que nas telecomunicações existe a interconexão entre redes. As redes de telecomunicações, aliás, são livres para circulação de informações. O acesso às redes pelos serviços de valor adicionado deveriam servir de modelo para acesso entre os serviços de aplicação e as plataformas permitindo uma interface por APIs.

Não se deve permitir cobrar pra dar relevância a conteúdos de imprensa em resultados de busca. Esse deve ser orgânico considerando critérios de relevância a serem observados de forma objetiva por veículos e profissionais com responsabilidade editorial identificável e, portanto, acionáveis, observando-se ainda a justa remuneração pelo seu uso e agregação. Igualmente deveria ser proibida toda e qualquer propaganda político-partidária ou impulsionamento em redes sociais e serviços de mensagens interpessoais de pré-candidatos, candidatos partidos ou coligações, salvo a pagina institucional dos entes políticos.

Do ponto de vista dos conteúdos, as plataformas que detenham o controle dos meios de conexão entre usuários como as mídias sociais devem ser corresponsáveis pelo conteúdo pago impulsionado. O negócio finalístico dessas empresas publicitárias é a propulsão algorítmica de conteúdos de terceiros mediante pagamento como um verdadeiro míssil de precisão voltado para o bombardeio de conteúdos que, infelizmente, em reiterados casos, ocasionam danos irreparáveis. Uma reputação de um individuo ou o resultado de uma eleição são definitivos e forjam destinos. Se comercializam opiniões de terceiros devem assumir o risco de fazê-lo e dos danos decorrentes. A desinformação ou discurso de ódio espalhados pela rede deveriam demandar das mídias sociais a entrega da informação correta aos usuários atingidos. O Marco Civil da Internet não alcança os danos coletivos, tampouco trata de publicidade.

Uma gigante recentemente informou que “apenas” 20% dos conteúdos que violam suas próprias políticas furam a peneira de moderação. Imagine industrias como a de transporte aéreo usar o mesmo argumento como desculpas para falhar. Ou fabricante de preservativos. Se um sinal de televisão cai ou de um serviço celular gera uma indignação dos usuários, processos e multas às empresas. Caso um serviço de plataforma com notória relevância e impacto social fique indisponível vira assunto e vai para o topo dos trend topics. Uma correlação entre o que se coleta e o que se entrega é essencial, inclusive com sanções no caso de falha sistêmica.

O documentário “Dilema das Redes” nos mostra que de fato importa: o modelo publicitário que financia o engajamento de conteúdos nocivos. Em recente artigo na Wired, foi sugerido em texto do colunista político Gilad Edelman, baseado no trabalho acadêmico da estudiosa do antitruste, Dina Srinivasan, uma regulação do mercado publicitário inspirado nos padrões da bolsa de valores, haja vista que a compra de midia se dá pelo modelo de leilão RTB – Real Time Bidding. Por que não se pensar em uma CVM – Comissão de Verificação Midiática com observância às métricas, transparência, brand safety e combate a fraudes? As contratações de publicidade devem ser reconhecidas e tributadas no país de destino dos consumidores. Se somos mercadorias de dados que ao menos nos comercializem e revertam ao país de destino. Plataformas atuam como anunciantes, agentes intermediários, DSPs, SSPs, CRMs, publishers e aferidores de audiências e das metas de suas próprias métricas. Como disse Martin Sorrel, fundador da agência internacional WPP “jogam e apitam ao mesmo tempo”.

Por que para divulgar um anuncio em uma determinada plataforma, necessariamente deve se usar as ferramentas do conglomerado da mesma plataforma? O único sistema de tecnologia para compra de anúncios no YouTube, o maior site de streaming de vídeo do mundo, é a ferramenta de compra de anúncios do Google. Mais uma vez a interoperabilidade aplicável ao modelo das plataformas conglomeradas é vital para permitir que o sistema seja aberto de modo a garantir que aplicações que não integrem a estrutura conglomerada da plataforma possam rentabilizar anunciando em outros produtos das Big Techs.

O modelo laissez faire, laissez aller, laissez passer, representado pela Section 230 do Communications Decency Act de 1996, em debate para revisão nos EUA, foi essencial para o desenvolvimento da internet dos anos 90, mas acabou permitindo, a partir da inação dos agentes públicos, um gigantismo que formou nações próprias travestidas de “comunidades” de bilhões. Estamos imersos em uma espécie de sandbox regulatório no modo infinito que criaram extensos desertos com dunas e areias movediças. Não existe livre mercado sem mercado. O tópico do momento é o poder das lojas de aplicativos e o seu uso não apenas para abocanhar fatias expressivas de negócios ali hospedados, bem como participações que visam inviabilizar concorrentes. Mais uma vez invocando as telecomunicações, o reconhecimento de assimetrias regulatórias com outras indústrias e potencial competidores, bem como conceitos como Poder de Mercado Significativo, interconexão, garantia de acesso à rede e sistema transparente de negociação de ofertas podem servir de inspiração para o entendimento de que  plataformas com poder de mercado e de informação sejam reconhecidas pelo Estado como tal haja vista pelo o conglomeradas com poder de mercado e informação exercem relevante impacto na sociedade de modo a calibrar os efeitos indesejáveis de suas ações sobre serviços, negócios e pessoas-produtos.

Agora é preciso que as autoridades constituídas eleitas ou nomeadas exerçam seus papeis e quebrem esse ciclo vicioso de gigantismo na extração de dados dos modelos conglomerados globais e que atuam em vários elos de várias cadeias de vários serviços. A comparação mantra de dados com petróleo nos lembra que também são sobre grandes plataformas que as petrolíferas perfuram em busca do que cobiçam. Os usuários mesmo produtados são únicos; mesmo commodities são cidadãos. E por isso, seus representantes devem ter coragem de cumprir a função para a qual não existe dilema, diferente do titulo do documentário da vez: proteger a democracia. Bem, aqui estamos.

* Marcelo Bechara nasceu em Salvador. Formado em Direito pela Milton Campos em 2001, tem MBA pela FGV em Direito da Economia EN 2003 se especializou em Direito Digital. Foi Procurador-Geral da Anatel de 2010 a 2011, Conselheiro-Diretor da Anatel de 2011 a 2015, sendo Vice-Presidente da Anatel em 2015. Membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil – CGI.br por 9 anos entre 2006 e 2015 tendo participado da formulação do Marco Civil Da Internet. É membro do Conselho Superior da ABERT – Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão para o biênio 2018-2020 e Membro do Conselho Nacional de Cinema desde 2018.

Postagens relacionadas

Novo Estatuto Da Segurança Privada: Modernização e Desafios no Setor – Artigo

Tropeços diplomáticos

Preocupantes sinais dos tempos

Usamos cookies para aprimorar sua experiência de navegação. Ao clicar em "Aceitar", você concorda com o uso de cookies. Saiba mais