O governo bate cabeça e demora a reagir de forma estruturada
O avanço do novo coronavírus pelos países nos tornou duplamente prisioneiros: de nós mesmos e do isolamento social. Para os que vivem bem sozinhos, o problema reside apenas na limitação do convívio social e dos trajetos disponíveis. Para os que vivem mal com eles mesmos, trata-se de um drama em dose dupla, pois não há para onde fugir.
A volta ao normal será afetada por novas tendências. Por exemplo, a adoção do trabalho remoto, já anunciada por grandes empresas, vai gerar dramáticas repercussões sociais, econômicas, familiares e psicológicas. Por um bom tempo, o convívio será mais seleto: apenas com familiares e amigos mais chegados. Os relacionamentos poderão, assim como as relações de trabalho, ser deslocados para as vizinhanças.
Viajaremos menos e precisaremos de menos escritórios. Os talentos estarão remotamente à disposição. Pagamentos em criptomoeda podem ganhar força à medida que o talento se torne mais desregionalizado. Mesmo com o fim da pandemia e a vacinação generalizada, os efeitos nas relações de trabalho serão duradouros, afetando profundamente as relações pessoais. Luc Ferry, em seu livro Diante da Crise (2010), defendeu a ideia de que a crise de 2008 era mais do que financeira: era também econômica. A Covid-19 vai mais além e provoca quatro crises em uma megacrise: financeira, econômica, social e sanitária.
Que impacto a pandemia terá sobre as relações humanas a partir do fato de as pessoas trabalharem mais em casa e circularem menos pelas ruas? Haverá aumento de violência doméstica e de surtos psicóticos? Perda na qualidade da educação das crianças? A criminalidade crescerá por causa do desemprego? A economia informal, que depende bastante da circulação de gente pelas cidades, terá de se reinventar? E setores formais que envolvem agrupamentos humanos, como empresas aéreas e de locação de carros, hotéis, restaurantes, cinemas, teatros?
Falta uma narrativa que dê a certeza de que temos um comando
Assim, o que poderia ser prosaicamente resolvido com distribuição de dinheiro hoje exige respostas que vão além das meramente estruturantes, dadas as circunstâncias inéditas dessa pandemia. Não é o que ocorre até agora. O governo bate cabeça e demora a reagir de forma organizada.
Para piorar, a pandemia ainda está sendo temperada por uma crise política, que teima em disputar espaço e atenção com a propagação do vírus. E tudo isso fica mais grave também porque carregamos uma pesada mochila de questões não resolvidas nos séculos passados.
No limite, o que vimos até agora foi pouco para o tamanho do problema. Há uma preocupação com a economia e com aspectos fiscais, mas não com os efeitos de todas essas crises combinadas, que é o que vem por aí. Claramente, falta ao governo tanto o entendimento sobre a dimensão das crises decorrentes da pandemia quanto uma narrativa que dê aos agentes econômicos a certeza de que temos um comando seguro.
Temos bons fundamentos para nos recuperar, mas a perda de tempo é um grave problema. A desorganização institucional e a falta de uma abordagem estruturante para os desafios que se apresentam vão cobrar um preço alto na retomada.
Publicado em VEJA de 3 de junho de 2020, edição nº 2689