O governo de Jair Bolsonaro, que chega ao fim nos próximos dias, é um retrato fiel do processo de atrofia do poder Executivo perante o Legislativo. A gestão apresenta alguns números que ilustram bem a força adquirida pelo parlamento nos últimos anos.
No último quadriênio houve recordes em vetos presidenciais derrubados e medidas provisórias que ficaram pelo caminho. Até o encerramento das atividades deliberativas no Congresso Nacional (22/12), cerca de 43% dos vetos (integrais ou parciais) a matérias aprovadas foram revertidos pelos parlamentares. Em relação às medidas provisórias, em torno de 40% não concluíram seu trâmite. Esse montante compreende três propostas rejeitadas, quatro revogadas pelo próprio presidente e as demais que “caducaram” sem serem analisadas ou foram suspensas pelo Supremo Tribunal Federal.
Nenhum outro governo colecionou tantos reveses. E a taxa de insucesso poderia ser ainda maior, pois ainda há matérias pendentes que serão analisadas somente em 2023. Mais do que a fragilidade de articulação política da gestão Bolsonaro e eventos ocasionais que contribuíram para esse quadro, como a pandemia e crises internacionais, há uma nítida postura de maior autonomia parlamentar. O cenário difere bastante de outrora, quando o Executivo detinha amplo controle sobre a agenda legislativa. Essa mudança decorre de um processo de reafirmação do Legislativo em curso ao longo dos últimos anos.
Um dos passos mais significativos nessa construção foi tornar obrigatória a deliberação de medidas provisórias e vetos presidenciais. Até a promulgação da Emenda Constitucional 32/2001, o presidente da República podia reeditar indefinidamente as MPs após o prazo de 30 dias de vigência, o que as mantinham válidas sem necessidade de votação. No caso dos vetos, duas normas promoveram mudanças fundamentais na sistemática de votação. A primeira delas foi a Resolução 1/2013, do Congresso Nacional, que deu eficácia ao comando constitucional que determina o sobrestamento da pauta nas sessões conjuntas quando há vetos emitidos há mais de 30 dias. Antes, eles raramente eram analisados. Em complemento, a Emenda Constitucional 76/2013 aboliu o voto secreto nas votações dessas matérias.
Se por um lado, tal medida tenha deixado os parlamentares mais expostos a pressões do Executivo, por outro a instituição do chamado orçamento impositivo neutralizou os efeitos. Sem o receio de eventuais retaliações do governo na liberação de suas indicações orçamentárias, os congressistas puderam atuar com maior independência.
Nesse sentido, a prerrogativa de controlar parcelas do orçamento vem sendo ampliada gradativamente. As emendas constitucionais 86/2015 e 100/2019 tornaram de execução obrigatória as emendas orçamentárias individuais e as de bancadas estaduais. Já a EC 105/2019, permitiu que metade das emendas individuais possa ser paga diretamente ao beneficiário, sem necessidade de convênio ou qualquer outra forma de intermediação.
Por fim, a partir de 2020 foi implementada a dotação RP9, também conhecida como emenda de relator ou orçamento secreto. Há poucos dias, esse instrumento foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Mas nesses três anos em que vigorou, a RP9 respondeu pela maior fatia de recursos públicos endereçados por deputados e senadores. Contudo, é bastante crível que ocorra uma nova investida para recriar mecanismo orçamentário semelhante.
Portanto, o futuro governo precisa de muita atenção na relação com o Congresso, tanto pela garantia da governabilidade, quanto pela ameaça constante de perda de poder. O aprofundamento desse processo tende a tornar mais incisivo o debate sobre a adoção de um sistema de governo nos moldes do semipresidencialismo, com a redução do papel do Executivo e transferência de funções governativas para o Legislativo.
Fonte e reprodução: Congresso em Foco