O grande risco afegão para os Estados Unidos e China – Thiago de Aragão

Após 20 anos, com a paciência de quem se adaptou a viver em cavernas, o Taleban conquistou a capital afegã, no último domingo (15). Ashraf Ghani, o legítimo presidente, fugiu do país com destino ao Tadjiquistão. Russos dizem que seu avião estava repleto de dinheiro quando decolou do caótico aeroporto de Cabul.

O Afeganistão sob controle do Taleban representa muito mais para o mundo do que simplesmente as cenas lamentáveis de uma terra longínqua e praticamente alienígena para muitos brasileiros. Vamos aos pontos que poderiam indicar uma situação complexa e perigosa para o mundo.

As tensões entre Estados Unidos e China expressam-se em diversas áreas: econômica, comercial, política, conceitual, geopolítica, militar, tecnológica etc. Por conta disso, ambos os países buscaram aliados estratégicos para acomodar seus interesses da melhor forma possível.

Na Ásia, especificamente, os EUA se aproximaram da Índia de uma forma intensa, principalmente nos últimos anos, tornando-a um aliado mais importante do que o Japão. A Índia é aliada no QUAD (compondo uma aliança naval com a Austrália, os EUA e o Japão ), base de diversas empresas americanas de cibersegurança, que monitoram eventuais ataques chineses, além de ser um contraponto importante em relação à China, para que os EUA mantenham capacidade de navegação e influência no Oceano Índico.

Em paralelo, a China desenvolveu uma aliança importante com o Paquistão, principalmente após a saída dos americanos do Afeganistão e ao término da parceria entre Paquistão e EUA.

Os chineses vêm investindo pesado no país em obras de infraestrutura e linhas de crédito. O porto de Gwadar, no sul do Paquistão, visa expandir uma alternativa ao Mar do Sul da China (e ao estreito de Malaca), para a importação de commodities críticas para a manutenção industrial chinesa.

Consequentemente, uma vez que a influência chinesa no Paquistão se consolida, é de absoluta importância manter uma influência ativa no vizinho problemático, o Afeganistão.

Durante muito tempo, os chineses dialogaram de forma saudável e amistosa com o governo legítimo afegão. Linhas de crédito também foram oferecidas. No entanto, a China também estabeleceu um diálogo amistoso com lideranças talebans, agindo como uma espécie de mediadora entre os dois lados. A mediação, não militar, tornou a China uma observadora ativa ao invés de uma influenciadora prática.

No dia 29 de julho, o governo chinês recebeu representantes dos talebans, indicando legitimidade ao grupo que já havia conquistado praticamente metade do país. O controle de Cabul era iminente. Os EUA, por sua vez, mantinham poucas forças no país (por volta de 5 mil soldados), apesar de sua embaixada funcionar ativamente coletando inteligência e apoiando logisticamente o governo afegão.

Conforme o Taleban conquista Cabul, o governo afegão foge e funcionários da embaixada americana deixam às pressas o país (com cenas trágicas e lamentáveis no aeroporto), o controle está assegurado aos insurrectos. Sem formalizações, há indicativos de que o governo chinês reconhecerá (mesmo que silenciosamente) a legitimidade do novo governo.

O efeito financeiro

O secretário de Estado americano, Antony Blinken anunciou o envio de mais mil soldados para assegurar a proteção do aeroporto. Essa decisão é muito importante e leva os EUA a uma bifurcação extremamente estratégica para definir os próximos acontecimentos.

Caso os americanos decidam ampliar as forças no país, para tentar combater o Taleban em Cabul, uma nova e mais intensa guerra se iniciaria. Para isso, seria necessário reorganizar as falidas forças de defesas afegãs que, por mais dinheiro que receberam para se equipar, seguem sendo sofríveis.

Caso os EUA embarquem na aventura de retomar Cabul e expulsar as tropas talebans, teriam que arcar com um alto custo físico e financeiro. A grande questão que fica é: a China apoia de alguma forma a manutenção do Taleban à frente do governo? Se a resposta for sim, a China provavelmente apoiaria o Taleban financeiramente. Essa conexão inauguraria a primeira guerra de proxy entre EUA e China nesse novo momento de tensões entre os dois países.

Uma guerra de proxy é extremamente complexa. Durante a Guerra Fria, os confrontos entre americanos e soviéticos se deram dessa forma. Caso isso volte a ocorrer, todas as relações entre EUA e China, que já se encontram deterioradas, ficariam ainda piores, afetando diretamente as questões comerciais, econômicas e políticas entre eles. Sanções americanas aumentariam e retaliações chinesas seriam mais diretas. Um forte impacto nas bolsas de valores e na economia global não poderia ser descartado.

Obviamente, para que isso ocorra, duas grandes decisões precisam ser tomadas: EUA devem decidir se enviará soldados para restabelecer o governo legítimo e expulsar o Taleban de Cabul; pelo lado da China, se continuaria apoiando o Taleban caso os EUA assumam o lado dos afegãos.

Não há como negar de que a saída das tropas americanas, da forma que foi feita, foi um erro. Equívoco de Biden, mas amplamente defendido anteriormente pelo seu antecessor, Donald Trump. O pronunciamento de Biden deixou claro que os EUA não querem mais se envolver militarmente, ao menos que a situação deteriorada extrapole as fronteiras afegãs e ameacem a estabilidade da segurança regional. Mesmo assim, é um jogo arriscado.

Um importante ponto de consideração é o relacionamento do Taleban com o Movimento Islâmico do Turcomenistão do Leste (ETIM). Esse grupo conta com uigures muçulmanos e tem uma postura bastante negativa contra Pequim, por conta da perseguição contra chineses uigures na província de Xinjiang.

Por mais que as lideranças do Taleban venham assegurando representantes do governo chines, ao longo dos últimos meses, que esse laço com o ETIM seria rompido, importantes membros talebans possuem uma visão diferente de que a aliança deva ser mantida e reforçada. Estrategicamente, o Taleban precisa da China para acelerar um processo de legitimação, mesmo que seja simbólica por parte da China. Além disso, existe a expectativa de, uma vez consolidado o controle do governo afegão, a China não pode ser desprezada como parceira.

Por outro lado, a convicção fundamentalista de liderancas militares talebans tornaria dificil o abandono no suporte ao ETIM. Cabe acompanhar se a convicção fundamentalista ganhará dos desejos políticos.

O interesse econômico na China terá um papel preponderante na postura do Taleban governo, diferentemente do Taleban rebelde. O CPEC (Corredor Econômico China-Paquistão) é um projeto de 60 bilhões de dolares, critico para a infraestrutura paquistanesa, mas também para aliviar a dependência chinesa no estreito de Malacca.

Recentemente a China vem considerando expandir esse corredor para envolver o Afeganistão no plano. Essa expansão é um desejo chines e taleban, desde que a ETIM seja excluída do rol de amizades do Taleban.

O problema já está dado, mas a questão que fica é: será um problema confinado ao Afeganistão (com respingos no Paquistão e em outros países da região)? Ou será um problema que indiretamente colocará os EUA e a China em um novo grau de animosidade?

Mesmo sem um reposicionamento em relação aos EUA e à China, a simples presença do Taleban liderando um país é algo que traz um grande risco à estabilidade regional. Outros grupos poderiam ser apoiados pelo Taleban e teriam, no Afeganistão, um ambiente seguro para operar, tal como aconteceu com a Al-Qaeda no começo do século. A instabilidade transborda fronteiras com muita facilidade e a baixa institucionalidade regional é um terreno fértil para a radicalidade.

Para a Índia, a conquista de Cabul e tomada do governo afegão não poderia vir em pior hora. Temerosa de que o Taleban orquestre atentados no país, estimulados pelo Paquistão, a Índia vinha mantendo uma relação proveitosa com o governo fujão de Ashraf Ghani.

Visando uma interconectividade comercial com o Médio Oriente, a Índia mantinha negociações para financiar a estrada Zaranj-Delaram no Afeganistão. A ideia era conectar o pais ate o porto de Chabahar, no Irã.

A fatura da aliança profunda com os EUA também pode aparecer para o governo de Nova Déli. Se o “amigo do meu inimigo é meu inimigo”, a Índia surge como forte candidata a maior antagonista ao Taleban na região. A conexão China-Paquistao-Taleban é o maior pesadelo politico e de segurança nacional para a Índia e consequentemente, um problemão para os EUA.

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