Doutrina Militar: por que a Rússia atacou a Ucrânia? Por que agora? – por Daniel Tavares

Presidente da Federação da Rússia, Vladmir Putin. Foto: Marcos Corrêa/PR

Como se não bastassem as consequências nefastas de três anos de pandemia, agora o mundo se depara com a invasão russa da Ucrânia.  A incerteza que começava a se dissipar com a redução dos casos de Covid-19 volta na forma de névoa da guerra, “nebel des Krieges” como diria Clausewitz. Saímos do campo da ameaça sanitária global e entramos na da ameaça militar, repetindo o que já vimos há exatamente um século.

É natural que, em situações como a que vivemos, os líderes mundiais – como Vladimir Putin – recebam os holofotes, em razão do poder que têm para mudar o rumo político de seus países. No entanto, é importante lembrar que as grandes decisões estratégicas – como uma invasão militar de um país soberano – nunca são tomadas de forma isolada, por mais autoritário que seja o líder em questão.   Estudar, com frieza, a forma de pensar – o mindset – e o processo de tomada de decisão dos assessores diretos das autoridades políticas se torna absolutamente fundamental para compreender a razão dos eventos.   No mundo dos serviços de inteligência chamamos isso de “calçar os sapatos do adversário” e antecipar seus movimentos.

Da mesma forma que na maioria dos países, o planejamento de guerra ocorre nos estados-maiores, que nada mais são do que estruturas onde se reúnem especialistas militares de várias áreas – sobretudo planejadores, analistas de inteligência, especialistas em logística, além de outras especialidades.   No caso da Federação Russa, o planejamento é feito pelo Estado-Maior das Forças Armadas, que é subordinado ao Ministro da Defesa. O planejamento final é autorizado pelo ministro que o submete ao Comandante Supremo, nesse caso o presidente Putin.

É importante notar que o atual ministro da defesa russo é Serguei Shoigu, que assumiu o cargo em 2012, escolhido à dedo pelo presidente, em razão da sua lealdade demonstrada desde o primeiro mandato de Putin como Primeiro Ministro.   Shoigu é o mais longevo dos ministros da defesa russos (está há quase dez anos no cargo), além de ser considerado o grande responsável pela transformação radical que resgatou as forças armadas do limbo em que foram lançadas, com o fim da URSS.  Shoigu, que é considerado “Herói da Federação Russa”, é muito respeitado pelos militares e tem como foco o reestabelecimento do poder militar russo na Eurásia.

O Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas é o General Valery Gerasimov que está no cargo desde 2012, quando tomou posse ao lado do ministro da defesa Sergei Shoigu.  Gerasimov é apontado por pesquisadores ocidentais como um dos maiores estrategistas russos, tendo sido considerado criador da “doutrina Gerasimov”, que combina medidas militares, tecnológicas, econômicas, culturais e de desinformação para alcançar objetivos estratégicos. Ele costuma ser apontado com um dos grandes responsáveis pelas operações militares que controlaram as revoltas regionais na Geórgia, na Chechênia, bem com a ocupação da Criméia e das regiões separatistas do Donbass.  Tanto Shoigu quanto Gerasimov são alvos de sansões internacionais.

Tomando como base o ponto de vista dos planejadores militares russos, pode-se dizer que a convergência de quatro fatores fundamentais justifica o Impulso Estratégico que levou à decisão de invadir a Ucrânia.

O conceito de “impulso estratégico” foi proposto pelo teórico francês General André Beaufre, em 1965, e costuma ser usado para análise de fatores de planejamento militar, em nível estratégico. De acordo com o general, uma decisão precisa ser amparada em quatro fatores: 1) forças materiais; 2) forças morais; 3) tempo; e 4) liberdade de ação.

Os mesmos fatores são analisados continuamente pelo estado-maior para amparar decisões futuras, que são impossíveis de prever, mas que podem ser estimadas.  São eles:

1) Forças materiais.  Essa variável está relacionada à existência de meios físicos a serem empregados para imposição da força.  Ela está relacionada diretamente aos custos do emprego militar. Podem ser enquadrados nesse conceito o acesso a armas, munição e os recursos humanos dispostos ao recrutamento.  Diferentemente do que muitos pensam, a Federação Russa e suas forças armadas vêm se preparando para a invasão desde 2012, quando o Putin colocou Shoigu e Gerasimov nas posições que eles ocupam até hoje.  Os preparativos incluíram aumento de reservas financeiras, matérias-primas e assinatura de acordos como a China e o Irã, entre outros.  A estrutura das forças armadas foi restaurada, e, sobretudo em 2014 – invasão da Crimeia – novas divisões foram posicionadas na região militar ocidental russa.  Além do que, o estado-maior conta com o arsenal russo de armas nucleares como fator de dissuasão estratégica.

2) Forças morais: As forças morais compreendem os aspectos da Psicologia Social que contribuem para justificar o emprego dos meios. Esse aspecto tem a ver com o apoio da população russa e dos meios de comunicação de massa. É provável que o estado-maior tenha avaliado que as campanhas de propaganda contínua que ocorrem desde 2014, tenham sido suficientes para convencer a população russa a apoiar a invasão ou, ao menos, manter-se neutra.  A imagem pública do presidente nesse caso é muito importante.  Segundo o instituto Statista, Putin tem cerca de 70% de aprovação em fevereiro de 2022, e a tradição de ganhar apoio em momentos de crise.  Outro aspecto importante diz respeito à existência de grande proporção de russos étnicos vivendo na Ucrânia, particularmente nos oblasts orientais.  Para o estado-maior esse fator é muito importante porque proporciona as condições ideais para a criação de uma zona de concentração de meios militares, com o apoio de separatistas ucranianos.

3) Tempo:  o fator tempo indica a influência do desgaste das ações continuadas sobre os atores e sobre o ambiente onde suas operações ocorrem. Nesse caso, está relacionado diretamente à eficiência dos meios materiais e ao impacto psicológico sobre a sociedade vitimada pelo conflito.  Para muitos analistas, o agravamento da crise militar nada mais é do que uma escalada. Segundo eles, a guerra vem se desenrolando, de fato, desde 2014, tanto que já haviam sido contados mais de 14 mil mortos, antes da ofensiva atual. Do ponto de vista estritamente militar, a guerra começou em 2014 e continua.  Ou seja, o planejamento e os preparativos têm sido contínuos desde então. Em suma, enquanto para a opinião pública global o que estamos vendo seria uma nova guerra, para o estado-maior se trata de mais um evento – ainda que muito mais grave – de uma cadeia que começou há muito tempo.  No entanto, o tempo, a partir de agora, passa a ser um fator negativo.  Os objetivos militares têm que ser conquistados logo, sob pena de impactar a liberdade de ação e o apoio interno.

4) Liberdade de Ação: O fator “liberdade de ação” representa a autonomia para empregar a força, do ponto de vista da lei internacional ou nacional. Em essência, relaciona-se com o amparo legal definido no processo legislativo.  Esse aspecto envolve tratados que haviam sido firmados anteriormente como os Acordos de Minsk (Nov, 2015), que definiu o status dos adversários após os conflitos no Donbass.  Esse, talvez, tenha sido o fator crítico adotado pelo estado-maior para definir o momento do ataque e a manobra diplomática para tentar legitimar a ação.

É muito provável que o estado-maior, com base em relatórios de inteligência, tenha concluído que os países da OTAN teriam muito poucos recursos para ir em socorro à Ucrânia, além de a dependência energética dos países centro-europeus em relação ao gás russo servir de fator de contenção.  Tudo isso somado ao fato de o novo governo nos EUA ser visto como impopular.

O aspecto “liberdade de ação” tende a ser o mais restritivo. Nesse caso, a solução adotada pela Federação Russa talvez tenha sido o financiamento de campanhas de Influenciação nos países que poderiam adotar posições contrárias.  No Brasil, por exemplo, a dependência do agronegócio em relação aos fertilizantes russos, pode ter sido um dos fatores explorados em campanhas de Influenciação.

Sendo assim, respondendo à pergunta inicial, é provável que o estado-maior russo, analisando os fatores acima descritos, tenha concluído que havia boas condições para iniciar a invasão, não havendo razão para desmobilizar a imensa concentração de tropas nas fronteiras com a Ucrânia que, aliás, estavam em território russo.  Ou seja, havia uma convergência perfeita entre fatores de decisão e o timing não poderia ser perdido.

A questão que fica agora é: até quando dura a invasão russa em território ucraniano?  Ou ainda, quais são os limites do impulso estratégico russo? A avaliação cuidadosa dos fatores acima pode servir de ferramenta para antecipar futuras ações, ainda que não seja possível prever o futuro.

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