A arte, por si só, possui como característica fundante o fato de que a publicação de uma obra, apesar de toda a indicação de quais foram os passos tomados pelo autor para produzi-la, permite que cada observador, no papel de participante (ou até coautor da obra, como desejavam, por exemplo, artistas plásticos como Lygia Clark e Hélio Oiticica), desenvolva e expanda as perspectivas propostas pelo artista e, assim, crie ressignificações a partir da obra original. Tal é a beleza da arte, esse potencial criativo inesgotável.
Há obras que por si são especialmente magníficas e complexas, cujas tentativas de expansão de significados, pelo observador, fracassam muitas vezes dada a grandiosidade da obra original, e nossa incapacidade de expandir o potencial expressivo original. Há outras, sobretudo depois das de Lygia e Oiticica, que permitem maior desenvoltura, em que a proposta inicial até estimula a interação e manifestação intelectual do observador. De uma forma ou de outra, a posição de intérprete e partícipe da obra é inerente a qualquer um que as contemple.
Dito isso, o Brasil está bem representado na edição de 2022 da Bienal de Veneza. A mostra, chamada ‘Com o coração saindo pela boca’, do alagoense Jonathas de Andrade, destaque entre artistas de sua geração, brinca com expressões de nosso dia a dia e as materializa através de esculturas interessantes.
Entre as mais curiosas, como a própria entrada do pavilhão, que simula uma orelha pela qual os visitantes passam, e que recebe o nome de “Entrar por um ouvido e sair pelo outro”, está uma de nome “Dedo podre”. Imponente, a escultura é composta de um dedo, indicando a presença do eleitor, e três botões, simulando a urna eletrônica: o verde, que confirma o voto; o branco, que indica voto em branco; e o laranja, que corrige.
O dedo, ao apontar para a tecla verde e apertá-la, indica a opção pelo voto. Porém, a característica instigante da obra é a presença de grande fenda no meio do dedo, indicando fragilidade, debilidade, a podridão.
Feita a ressalva do primeiro parágrafo, da liberdade criativa que o espectador possui ao observar a obra, em que seus devaneios aleatórios e espontâneos são valorosos, surgem algumas reflexões acerca da escultura curiosa.
Sabemos que o Brasil possui muitas vezes uma relação hostil entre seus representantes e representados. As razões são várias: o lapso entre o desejo veloz de mudanças pela população e a velocidade com que o processo legislativo tramita seus projetos; o hiper corporativismo existente entre parlamentares cujos objetivos de autoproteção são sombrios; o anseio popular de que a justiça também sirva para os de colarinho branco; as distâncias entre promessas de campanhas e a Realpolitik; entre tantos outros fatores que causam um estranhamento entre a forma com que a política opera e a vida rotineira de todos nós, os cidadãos.
Em ano eleitoral, algumas das tensões são escancaradas. A disputa é árdua e desonesta. Há preocupações severas entre parlamentares, cuja permanência ou retorno a determinadas posições de poder são submetidos a um ‘tudo ou nada’, a depender do resultado eleitoral. Com isso, o campo de disputa é uma épica batalha de marketing político e artimanhas não muito republicanas. Mas, acima de tudo, na base de toda a pirâmide do poder, apesar de esquecermos disso, estamos todos nós, eleitores, e o poder maior da República, o voto.
O alvo maior de todo o marketing de campanha, da atuação oposicionista, da atuação governamental, é o eleitor. Seja pelo convencimento puro e simples, seja pelas técnicas retóricas de persuasão, o objetivo é estabelecer a ideia de que aquele partido, o meu partido, é o mais adequado.
E essa prática eleitoral, mais do que um gesto de voto em si, deveria envolver um mínimo acompanhamento de ações políticas para a escolha do candidato. Acompanhamento esse que não tivesse prazo para começar e terminar, que fosse contínuo após a eleição, para verificação das promessas eleitorais e da eficiência e qualidade das políticas públicas estabelecidas.
Os últimos anos no país foram um tanto excepcionais, envolvendo grandes manifestações populares, impeachment de presidente, inúmeros escândalos revelados e severos conflitos institucionais. Ainda assim, mantivemos um rito institucional forte, cujo ápice é o processo eleitoral.
A sensação de insatisfação política que atinge a muitos é compreensível pela má atuação política que é tradição no país. Mas devemos lembrar que enquanto cidadãos, somos nós os responsáveis por escolhermos os que lá estão. Ainda que com a sensação de podridão corroendo nosso dedo como na obra exposta, a escolha de um candidato é fundamentalmente mais importante que a recusa pelo voto, seja através da abstenção, seja através do voto nulo ou do voto em branco. Manifestações como as já cogitadas por alguns membros de movimentos como o MBL e o partido NOVO, de defesa do voto em branco caso o segundo turno seja de fato disputado entre Bolsonaro e Lula, são moralmente questionáveis e democraticamente pífias.
A ‘sinuca de bico’ está praticamente dada, não há muita escapatória. Em um momento em que as forças em campo apresentam projetos tão distintos, devemos, enquanto partícipes do processo, apertar o botão nas urnas, ainda que nos sintamos podres por escolher alguém que, em nosso imaginário idealizado, está longe de ser o governante ideal. Há mais dignidade em passarmos por esse processo de podridão ao apertar o botão de um candidato que o eleitor possa julgar inadequado, do que dispensarmos o direito de escolher um projeto. As opções estão postas, os projetos são claros. Com paciência, tratemos de nosso dedo podre depois. Antes, votemos.