Entre as conclusões mais corriqueiras – e equivocadas – nos meios científicos e na mídia, a de que graças à ciência, e não à política, a vacina contra o coronavírus começou a ser aplicada
Itamar Garcez *
A tendência de criminalizar a política não é exclusividade do clã bolsonarista e seus sequazes. Dentro da mídia tradicional, políticos nunca fazem nada certo. E, se algo certo acontece, não foi ação de um político.
Esta regra implícita no jornalismo político não é totalmente descabida. Afinal, jornalismo “é oposição; o resto é armazém de secos e molhados”, na famosa frase de Millôr Fernandes. Nenhum presidente do pós-democracia, desde José Sarney, deixou de ser alvo e escrutínio da imprensa tradicional.
O governador de São Paulo, João Doria, na disputa com o presidente da República, Jair Bolsonaro, levou a melhor. Aplicou a primeira vacina à covid-19 em território brasiliano. Antes de chegar ao ápice com a vacinação da enfermeira Mônica Calazans, planejou a CoronaVac durante meses, enfrentando a oposição bolsonarista.
Político faz política
A primeira acusação é que o governador fez política. Estranho se não a fizesse. Um médico faz medicina. Um carpinteiro, carpintaria. Jornalistas, jornalismo.
A segunda, mais difusa, é a de que a briga entre os políticos atrasou a aplicação da vacina. Sim, atrasou. E a responsabilidade evidente é do presidente da República, eleito por 57,7 milhões de eleitores e, hoje, aprovado por cerca de um terço dos brasileiros.
Para chegar à vitória do último domingo à tarde, Doria fez a lição de casa. Diante do obscurantismo bolsonarista, o governador trabalhou por conta própria e garantiu a vacina aos paulistas.
Bolsonaro menosprezou a covid-19, que chamou de “gripezinha”, e a Coronavac (do consórcio Butantan/Sinovac), que classificou de “vacina do Doria”. Não é difícil inferir que, sem a iniciativa do governador, Bolsonaro não teria dado ordens ao despachante da Saúde para apressar a vacinação dos brasilianos contra o coronavírus, pois nunca mostrou interesse pelo imunizante. Bem ao contrário, desprezou-o seguidamente.
Sequer a aquisição elementar de seringas e agulhas foi providenciada. Não há divulgação, muito menos incentivo, comuns em propagandas governamentais desde os tempos dos generais-presidentes (vídeo nesta página). Caso de Ernesto Geisel, que chamou Bolsonaro de “mau militar”.
Oportunidade e vidas desperdiçadas
Mas, talvez a maior estupidez do hodierno mandatário tenha sido desprezar a ação que lhe daria projeção internacional e protagonismo interno. O Brasil detém uma das melhores expertises do mundo na produção e aplicação de vacinas. Índia e China perceberam neste setor um filão econômico e político, e vão se tornando players mundiais. O Brasil ficou para trás.
Mesmo que o cálculo presidencial fosse estritamente pragmático, sem qualquer empatia, a aplicação da vacina em larga escala daria perspectiva à economia estagnada, além de popularidade. Seus auxiliares, Paulo Guedes e Roberto Campos Neto, sabem disto e aconselharam a vacinação como ingrediente para a recuperação econômica.
Com limitada capacidade intelectual e crenças em sandices, Bolsonaro optou pelo desprezo à vacina. Mais. Difundiu a crendice num kit-covid sem comprovação científica. Mais. Influenciou milhões de brasileiros a descrerem na vacina como único meio eficaz de combater o vírus. Deu um tiro no pé.
João Doria, ao contrário, incentivou e bancou a produção da vacina. Cálculo político para chegar à Presidência da República? Provavelmente. Fato é que os brasilianos devem a Doria a chegada da vacina ao Brasil. Sim, primeiro houve vitória da ciência, como pregam jornalistas engajados e cientistas. Mas, sem a política, o imunizante não chegaria aos braços dos nativos. Como soeu acontecer em países onde os mandatários não adotam a boçalidade nefasta como método de poder.
* Itamar Garcez é jornalista