Este será mais um ano importante para a história do Brasil contemporâneo. Para o Legislativo, vivemos nos últimos dias o réveillon, com o retorno das atividades após o recesso e o carnaval. Com isso, retoma-se no Congresso disputas internas que serão interessantíssimas. Repleto de sentimentos reprimidos vindo à tona, o ano será intenso, em plena corrida eleitoral nos municípios, que também definem o balanceamento das forças partidárias para 2026, e em meio a guerras de narrativas de proporções catastróficas. Legislativo, Executivo e Judiciário, além de governo e oposição, merecem um panorama geral para este início de ano.
2024 será enérgico. Os sinais vindos de Brasília já estão mapeados. Há um alinhamento de forças do governo com o Supremo Tribunal Federal. A dita harmonia. O Congresso Nacional, encabeçado pelos presidentes das duas Casas, é ambíguo. É foco de resistência para o governo para as pautas não acordadas e para as pautas de ‘costumes’. É um grande parceiro nas pautas de interesse comum, especialmente em temas econômicos, como vimos para a Reforma Tributária, CARF e o novo Marco Fiscal, por exemplo. Sem acordos e negociações, a resistência é forte e a oposição ruge. A guinada do establishment parlamentar à direita é perceptível se comparado a anos atrás.
No Senado o ambiente é mais favorável ao governo. Mas é oscilante a depender da polêmica do tema. Na Câmara, em que a oposição é mais feroz, a situação é mais delicada. As bancadas do Agronegócio e Evangélica estão cada vez mais fortes. Sem acordos com os dois grupos, quase nada avança. Os deslizes do governo ao tratar com esses dois campos são vários. O discurso de Arthur Lira na reabertura dos trabalhos transmitia uma mensagem clara de insatisfação dos deputados com os acordos não cumpridos pelo governo, especialmente em relação às emendas.
Em 2023, vimos o governo aderindo ao ‘centrão’, mais do que o centrão aderindo ao governo, como muitos apostavam. Lula, que percebe que a dinâmica do legislativo tem mudado, oferece muito para receber um pouco. E isso o incomoda bastante. São muitos os cargos, emendas e participação no orçamento para conseguir aprovar alguns dos projetos. Outros sequer são levados a sério pelos parlamentares não alinhados. Além disso, a reconhecida ganância orçamentária dos parlamentares continua árdua. Tanto a esplanada e o Orçamento estão repletos de ‘dedos’ do centrão. O grupo, que é base dele mesmo, não apoia nada que não lhe interesse. Os acordos não se sustentam por fatores ideológicos ou partidários, se sustentam pelos termos firmados.
Desde a decisão pela impositividade das emendas, lá por 2015, que retirou poder do Executivo nas execuções das emendas para parlamentares, é notório o avanço do Legislativo no domínio das pautas e do Orçamento, já que seus membros se tornaram mais independentes do governo, sem necessitar do aval para conseguir as verbas para os seus municípios. Isso explica uma parte das dificuldades do governo em formar bases sólidas. O alinhamento de Lula com o STF vem para facilitar a aprovação de temas de seu interesse, em caso de resistências do Congresso. Vide a saga do Marco Temporal, por exemplo.
Em ano eleitoral muitos dos parlamentares estão direta ou indiretamente envolvidos no jogo municipal, o que pode colocar rivais nos mesmos palanques e colocar aliados em palanques rivais. Haverá quebra da lógica partidária a nível nacional. A política municipal funciona com outras regras. Dessa forma, o governo continuará tendo problemas na articulação no Congresso Nacional para aprovar alguns de seus temas, já que as prioridades de 2024 são outras e haverá prazo reduzido para essa articulação. Para isso, haja emendas, já que os cargos já estão praticamente esgotados.
Nas bases, a população, último fator a ser lembrado por Brasília, segue com suas demandas por menos gastanças e mais eficiência, assim como menos corrupção, mas elas permanecerão apenas no campo dos desejos. Controle da inflação, queda do desemprego e desempenho da economia precisam compensar. ‘It’s the economy, stupid’.
De forma enérgica, é recorrente que demandas reprimidas da sociedade, que desconfia e não dá tanto crédito aos políticos, desemboquem em movimentos de reação explosivas, como as jornadas de Junho de 2013, até hoje mal compreendidas pelas classes políticas. Tais ares, quando ignorados ou apunhalados por tempo em excesso, retornam de forma abrupta, seja em eleições de outsiders, cada vez mais frequentes em países democráticos ocidentais, seja em movimentos de disrupturas institucionais, como os bizarros atos de 08 de Janeiro.
Nos últimos dias, a Polícia Federal realizou operação contra Bolsonaro e suas principais cabeças nas forças armadas, em investigação que envolvem o 8 de Janeiro e as acusações de elaboração de um golpe de Estado. Em ano eleitoral, os impactos dos desdobramentos dessas operações ainda são incertos. Pode-se ter uma réplica tupiniquim do fenômeno Trump, que está cada vez mais forte, pode-se ter perdas eleitorais significativas na base de Bolsonaro de eleitores não radicais. Tudo depende do desdobramento e da materialidade das provas apresentadas. Fato é que seus apoiadores mostram fidelidade fortíssima e continuam engajados, representando boa fatia do eleitorado, e, com isso, o ex-presidente continuará influente na disputa eleitoral.
Curiosa é a pesquisa do instituto AtlasIntel, realizada na semana passada, em que 47% dos entrevistados afirmam que o país vive uma ditadura do Judiciário. 21% apenas afirmaram que o papel deste Poder está sendo seguido da maneira correta. 15% afirmaram que não sabem responder e 16% disseram que não há ditadura do Judiciário, mas que há abusos e medidas além das atribuições dos juízes e ministros. Na mesma pesquisa, 40% afirmaram que Bolsonaro é alvo de ações corretas, enquanto 42% afirmam que ele está sendo perseguido pela justiça. Para a pergunta sobre a confiança no trabalho e nos ministros do STF, 51% dos entrevistados afirmaram não confiar, enquanto 42% confiam. Há um ano, os números eram 44% e 45%, respectivamente, apontando para aumento da desconfiança com a Suprema Corte. A margem de confiança dos resultados é de 95%.
Os números são um alerta. As implicações políticas dos processos judiciais de Bolsonaro e as ações dos ministros do STF refletem um cenário de um país dividido. Mas é muito além de Bolsonaro. As críticas de campos políticos diversos à atuação do STF não são de agora. É só dar um google nas críticas do PT à Corte durante a Lava Jato, ou o Mensalão. Passíveis de críticas, tais ações são cada vez mais alvo de questionamentos. A atuação de juízes que “falam pelos autos” é cada vez mais rara. Entrevistas com antecipação de votos, relacionamentos próximos com atores políticos e tantas outras características, antes menos perceptíveis, estão às claras. A desconfiança populacional possui alguma razão de existir. Conrado Hubner Mendes, renomado advogado e professor de Direito, afirmou recentemente em coluna na Folha que tal movimento do Supremo, especialmente por alguns de seus integrantes, também ‘discrimina, persegue e viola a lei messianicamente’, justamente em nome do combate à discriminação, perseguição e violação da lei.
Vemos, há anos, advogados questionando desrespeitos em suas prerrogativas de defesa, além da existência de atos intimidatórios e a mistura do interesse público com o interesse privado feita à luz do dia. Interesses políticos e pessoais se sobressaindo aos interesses públicos. Ignora-se determinadas posturas e discrições que cargos neste nível exigem. Fala-se com a imprensa como se fossem técnicos de futebol, que preveem resultados e comentam as partidas. Como dito, a opção de falar pelos autos parece ser coisa do passado, as regras mudaram. Em evento da advocacia mineira, o presidente da OAB de Minas Gerais foi aplaudido de pé por milhares de advogados participantes, diante do presidente da Suprema Corte, por discursar nesses termos, defendendo suas prerrogativas e trazendo luz aos denunciados abusos. Não é necessário procurar muito para encontrar inúmeros exemplos. De Luzias a Saquaremas. Todos são atingidos. Alguns, porém, são mais iguais que os outros, neste mundo de iguais, diria Orwell.
Fazendo uma retrospectiva simplista, o País recentemente viveu uma série de fenômenos expressivos e que estão carnalmente conectados. Junho de 2013 foi um desses momentos de disruptura, em que passeatas massivas reclamavam dos clássicos problemas do Brasil: corrupção, segurança, descontentamento com a classe política, custos de vida etc. Logo após, aparece a Lava Jato. E a prisão de Lula. A eleição de Bolsonaro. A soltura e reabilitação eleitoral de Lula pelo STF. Sua eleição, na mais disputada da história eleitoral do país. Cujo resultado foi definido mais por rejeição a Bolsonaro do que por sua campanha de governo per se. Sinais de descontentamento que não são pacificados com palavras ao vento. O país necessita e carece de gestos concretos de atenção às demandas da sociedade. Até lá, novas erupções continuarão aparecendo, ainda que espaçadas por alguns anos.
Bolsonaro, que vê sua situação jurídica cada vez mais complicada após novos desdobramentos das operações, marcou 49% dos votos no segundo turno nas últimas eleições e mostra que expressiva parte de sua base é fiel e permanece unida. A polarização, calcificada, nos termos de Felipe Nunes e Thomaz Traumann (Biografia do Abismo, 2023), veio para ficar. Nas principais capitais do país vemos reflexos de que a disputa será de bolsonaristas contra petistas. As eleições municipais, especialmente nas grandes capitais, sempre servem de termômetro para a disputa presidencial 2 anos depois, ainda que com várias singularidades regionais.
Por parte do governo no campo econômico, não há gestos que apontem para a redução dos inflados gastos estatais, pujantes e corpulentos. Pelo contrário, observou-se em 2023 uma corrida contra o tempo para a aprovação de inúmeras taxações extras, para tentar cumprir a meta fiscal. A conta está sendo paga pelo lado do aumento dos impostos, não do lado da racionalidade dos gastos, que permite reduções de custo. Em um país de sobrecargas altíssimas, todo esse esforço de aumento de impostos é visto com repulsa por boa parte da população. Ainda que o argumento seja que a ‘taxação é para as empresas’, sabemos, todos, que quem paga a conta é o consumidor final.
Se em 2023 os surpreendentes resultados do PIB foram apoiados pelos setores de serviços e pelo agronegócio, 2024 parece frear um pouco este aquecimento. É generalizada a ideia de que neste ano haverá um crescimento menor que ano passado. Espero que todos erremos e que o crescimento surpreenda outra vez.
A postura de Fernando Haddad, na pasta da Fazenda, surpreendeu os setores produtivos, que tinham expectativas ruins. Com a vencedora postura adotada de moderador às demandas por maiores gastos, de alas mais radicais do PT, como a de Gleisi, Haddad é melhor visto. Em 2024, porém, há um desafio. Novos aumentos de gastos estão liquidando as novas receitas conseguidas pelas novas taxações. Cada vez mais observa-se a dificuldade que o governo terá de cumprir a meta fiscal. A conta não está fechando. Se não a cumprir, há gatilhos a serem acionados e, com a ausência de reajustes para servidores e novos gastos públicos, parte da base eleitoral do governo pode ficar descontente.
São muitos os sinais de que o governo precisa realinhar os caminhos que está seguindo. Para além da narrativa, que é perene à militância aliada, a comunicação do governo está patinando. Não há grandes feitos do governo no imaginário coletivo brasileiro, como mostram pesquisas recentes, a não ser a reedição dos programas que já existiam anteriormente. Os métodos de comunicação também têm sido repensados, pela percepção de não estarem “furando a bolha”. A ‘live’ presidencial, por exemplo, foi desligada, por um baixíssimo quórum de espectadores. O método era usado por Bolsonaro para estabelecer uma comunicação direta com seu eleitorado, mas falhou com Lula. Ainda há enormes dificuldades de compreender a dinâmica das redes virtuais, em que a ‘direita’ sai na frente.
Em um palanque recente, Lula falou sobre as dificuldades de penetrar o discurso petista nas bases eleitorais para além do PT. Questionava como um partido que “se porta como o detentor da verdade só elege 70 deputados” e que “as vezes, o problema está dentro de nós”. No ápice da Lava Jato, enquanto seus principais quadros estavam sob investigação ou já presos, Lula já questionava as diretrizes práticas do partido, dizendo que o Partido “só pensava em cargo” e “estava velho”. Defendia mudanças internas, para atrair novas gerações cujos ideais refrescassem o PT. Nos dias de hoje, percebendo tal fragilidade, adotou a tal frente ampla nas eleições, cujos partidos cobram preços altos em termos de participação no governo. O PT ainda demonstra dificuldade em compreender tal dinâmica de compartilhar o poder. Lula é maior e mais sagaz que o partido.
Neste ano o partido terá o menor número de candidatos a prefeitos de sua história, optando por coalizões com aliados de outros partidos com chances reais de vitória. No estado de São Paulo, por exemplo, o partido conseguiu 73 prefeituras em 2012. Hoje possui apenas 4. No Rio de Janeiro, o problema é semelhante. Em 2020, não conseguiram eleger nenhum prefeito em capitais brasileiras. Portanto, sabem que, diante dessa fragilidade, precisam manter as composições com os partidos aliados para poderem crescer novamente.
José Dirceu, também em falas recentes e demonstrando lucidez estratégica, questionava a ausência de perspectiva do PT em perceber que diretórios municipais e cadeiras no Congresso Nacional, antes ocupadas pela ‘esquerda’, passaram à ‘direita’. Alertava também que o partido está desconectado da realidade de suas bases. Chamou atenção para as eleições para o Senado em 2026, em que cada estado trocará duas das três cadeiras. Em 2022, das 27 cadeiras em disputa, Bolsonaro conseguiu eleger 16 aliados. ‘Look at the big picture’, dizem os americanos.
Partidos que passam muito tempo em postos de poder passam por tais problemas. Seus dirigentes maiores ficam muito apegados aos cargos e às regalias. Desconectam-se da realidade da população e suas prioridades são alteradas para defender a manutenção de seus cargos. É hora de o governo prestar atenção nos recados das ruas e de seus membros históricos, como Dirceu. As pesquisas, com todas as imprecisões que possam trazer, demonstram que a popularidade de Lula é menor do que ele gostaria. Para interlocutores, Lula tem demonstrado desconforto com isso. Gleisi chegou a dizer, também em palanque recente, que se a economia desandar, Lula perderia popularidade e o governo seria engolido pelo Congresso. Não discordo.
Portanto, em um primeiro passo, talvez, seria interessante relembrar internamente que a vitória em 2022 foi garantida pela rejeição a Bolsonaro e que a tal frente ampla, que era ampla de fato, deve também tomar decisões importantes, em nome dessa manutenção de alianças, mesmo que desagradando a cúpula do PT.
O Legislativo, se continuar tendo prerrogativas atropeladas, continuará reagindo, como visto recentemente, por exemplo, na saga do Senado Federal e as decisões monocráticas do STF e as discussões sobre mandatos fixos.
Por fim, que as demandas da sociedade precisam ser levadas em conta, para além do xadrez político do Olimpo, digo, de Brasília. Quando as reações populares aparecem, e normalmente são difusas, enérgicas e atrapalhadas, há um clima de ‘susto’ entre acadêmicos, jornalistas e a classe política. Mas o que não levam em consideração é que as causas são construídas tempo antes. Em sinais que quase todos ignoram. Depois, Inês é morta.
2024 pede paciência para sabermos os desdobramentos. É ano de eleição, de Bolsonaro na linha de tiro do STF, de novas negociações de Lula com o Congresso pela aprovação de seus temas, de disputas pela sucessão da Câmara e do Senado em 2025, de protagonismo do STF nos inquéritos, de eleições municipais. Nada como trazer uma série de coisas novas para manter tudo como está.