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Prefeitos e vereadores serão eleitos em novembro, mas nenhum presta

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O título desta crônica resume a crença paradoxal predominante no Brasil a respeito da representação eleitoral. O voto é direto, secreto e universal, mas as escolhas que fazemos foram, são e serão sempre as piores

Itamar Garcez *

Toda a vez que as eleições se aproximam reflui o debate sobre a qualidade dos candidatos – neste ano em 15 e 29 de novembro, a serem escolhidos livremente por 150 milhões de eleitores. Como sói acontecer, imediatamente após o pleito a cidadania passará a malhar os recém-eleitos.

A frase síntese desta esquizofrenia política é a que se lê em entrevistas a matutinos e hebdomadários. “Este Parlamento não me representa” equivale a dizer “votei, mas não tenho nada a ver com isso”. Vereadores e deputados serão eleitos pelo voto direto, secreto e universal, mas, desde já, não representam os brasilianos.

Predominante, a sentença é de tal forma arraigada à nossa cultura política que brota espontaneamente. Dia destes, na conversa de uma âncora e um colunista de uma rádio de alcance nacional o tema surgiu ao acaso ao referirem-se a um famoso padre.

– Por mim [ele] seria candidatíssimo… ao Nobel da Paz – defendeu o colunista e professor.

– Ah, tá. Ai que susto – retrucou a âncora.

– Ai, que susto – concordou outra jornalista.

– Eu já tava preocupada com o professor querendo meter ele na política. Não ia rolar – completou a âncora.

– Deus me livre! Deus me livre! – esconjurou o colunista, entre risadas de todos. 

Emblemático. Um trio bem informado, mas com o mesmo pensamento contraditório que predomina no eleitorado.

Parlamento velhaco, sociedade virtuosa

O Congresso Nacional, para ficar na representação máxima do legislativo patrício, não presta. Prepondera o imaginário no qual as duas cúpulas complementares do Legislativo federal são habitadas exclusivamente por larápios e interesseiros.

Se esta imagem corresponde à realidade, uma eleição seria o momento propício para melhorar os legislativos. O padre em questão merece tamanha consideração que poderia ser premiado com um Nobel. Portanto, enriqueceria o Parlamento, melhorando a média parlamentar.

Eis que não. Se ele é muito bom, Deus nos livre de vê-lo votando as leis que podem melhorar o Brasil. O País tem um orçamento milionário (R$ 3,6 trilhões em 2020). Aprová-lo e fiscalizar sua aplicação é função precípua do Legislativo. Caso eleito, o padre poderia influenciar diretamente o destino dos polpudos recursos públicos. 

Do jeito que se estrutura a visão majoritária, o Parlamento é lugar de gente má intencionada. Um padre com boas intenções, ou nada poderia fazer, ou seria contaminado pela súcia legislativa.

Portanto, seguindo este raciocínio, nada há o que fazer. Somos e seremos uma nação de gente honesta e trabalhadora comandada por políticos desonestos e indolentes.

Elegi, mas não é problema meu

Há duas premissas equivocadas nesse pensamento enraizado na mídia e espraiado na sociedade.

Primeira, a tentativa de separar eleitor e eleito, como se não fossem duas faces da mesma moeda. Sim, o sistema partidário é disfuncional e boa parte das legendas está à cata dos vultosos recursos dos fundos partidário e eleitoral – que, ademais, deveriam ser extintos.

Existem, no entanto, legendas e políticos com propósitos e objetivos explícitos, com projetos de poder. São poucas, o que é bom, pois um país não precisa de miríada de partidos. Mesmo assim, o eleitor persiste em sufragar candidatos com ficha corrida no lugar de ficha limpa – além de acreditar em salvadores da pátria, como o mandatário que ora nos conduz (teve 57,7 milhões de votos). 

Algumas disfunções estão embutidas nessa tentativa de separar eleito de eleitor, como votar reincidentemente em embusteiros e afastar os bons cidadãos, como o padre benfeitor, da política. Bastam estas características para tornar o eleitor corresponsável pela qualidade dos legislativos. 

Porém, se nenhum presta, que tal o eleitor movimentar-se e lá colocar autênticos representantes da sociedade? Ou fiscalizar os que elegeu? “É absolutamente incompreensível que o eleitor não acompanhe o modo como o político eleito exerce o mandato, já que se trata de seu interesse imediato”, indignou-se O Estado de S. Paulo, em editorial recente.

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,a-urna-e-o-mandato,70003368571

Leis por combustão espontânea

O segundo equívoco é concluir que, em que pese o Congresso Nacional, o Brasil avançou nas demandas populares. A conclusão fere a lógica.

Boa parte dos avanços políticos, econômicos e sociais conquistados nas últimas décadas deve-se ao Parlamento. Desde a Lei do Divórcio, do senador Nelson Carneiro, na década de 1970, até as cruciais aprovações dos projetos que mitigaram os efeitos da pandemia do coronavírus, todos tiveram a chancela do Parlamento.

Sim, leitor, houve tempo em que o casamento era indissolúvel. Coube ao Congresso Nacional eliminar esta armadura conjugal. 

Durante a pandemia, o Legislativo foi ágil. Aprovou proposições fundamentais para enfrentar a covid-19, sem as quais não haveria amparo legal para as ações do Executivo.

Ah, mas só fizerem isto, nada mais. Vejamos. Lei Maria da Penha, Código de Defesa do Consumidor, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto da Igualdade Racial, Lei dos Genéricos, Lei de Acesso à Informação, Estatuto do Idoso, Lei de Crimes Ambientais, Política Nacional de Resíduos Sólidos, Política Nacional do Meio Ambiente, Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb).

A Lava-Jato, a primeira operação de combate à corrupção que encarcerou homens ricos, brancos e poderosos, agora sob ataque conjunto de petistas e bolsonaristas, foi possível graças ao arcabouço legal aprovado pelo Parlamento. Caso da Lei das Organizações Criminosas, Lei Anticorrupção e leis de delação premiada. 

Legislativo, a patuleia sem adereços

Surge, então, mais um argumento contraditório. Bem, mas os políticos só fizeram tudo isto por pressão popular. A virtude torna-se impostura.

O Parlamento atendeu ao povaréu e votou como queriam a maioria dos eleitores, atendendo à demanda popular. Mas este aspecto é desprezado, como de somenos relevância.

Deve-se parte deste raciocínio sinuoso à baixa qualidade de muitos congressistas, envolvidos em maracutaias diversas. O senso comum nos indica que se são larápios e interesseiros nada de bom podem produzir. 

Paradoxal? Sim, eis paradoxo da atividade parlamentar. Um deputado ou senador pode ao mesmo tempo ser um meliante do erário e aprovar um avanço, um projeto que melhore a qualidade de nossas leis. C’est la vie.

Ao contrário do Executivo (parcialmente interditado ao povaréu) e do Judiciário (aberto tão somente aos endinheirados e seus causídicos argentários), o Legislativo, por sua natureza, é o poder mais permeável aos anseios populares. 

Mais do que isto, reflete as contradições da sociedade. O aborto é um exemplo. Não há consenso na sociedade sobre o direito da mulher de desfazer-se da vida que carrega no ventre. O Parlamento reflete esta indefinição.

Os prefeitos e vereadores que saírem das urnas em novembro não serão melhores ou piores do que a média dos cidadãos que os sufragam – pela semelhança ou pela omissão. Com suas contradições e idiossincrasias, os legislativos refletem as virtudes e os defeitos da relutante democracia brasiliana. São um espelho que evitamos para não encarar nossa imagem nua e sem adereços. 

* Itamar Garcez é jornalista

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