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‘EUA veem China como concorrente desleal e disputa durará muito anos’

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Enquanto os Estados Unidos enxergam na China um concorrente desleal em áreas como desenvolvimento de tecnologias e inovações, os chineses entendem que os americanos querem minar o seu poder e seu avanço comercial em diferentes regiões do mundo. Por isso, o analista Thiago de Aragão, diretor de estratégia da Arko Advice, acredita que o cenário é de uma disputa sem prazo para acabar que coloca frente a frente duas visões de mundo antagônicas.

Para Aragão, faz sentido falar em uma nova guerra fria, já que a disputa se dá em diferentes áreas como tecnologia, geopolítica, busca por alianças internacionais e relação comercial. “Enquanto um sentir que sua existência conceitual está ameaçada pelo outro, não haverá acordos pontuais que resolverão”, afirmou ele no dia em que a China determinou, em retaliação, o fechamento do consulado americano na metrópole de Chengdu. Antes, os americanos ordenaram o fechamento do consulado chinês no Texas sob alegação de que era um centro de espionagem e roubo de dados. “O objetivo de cada lado implica no enfraquecimento do outro nessas arenas”. Abaixo a entrevista completa.

Qual é o ponto central do embate atual entre China e EUA?

O principal ponto está relacionado à propriedade intelectual em temas de tecnologia. No entendimento americano, existe uma violação chinesa da propriedade intelectual americana que possibilita que a China equalize ou ultrapasse a capacidade tecnológica dos EUA. O desenvolvimento tecnológico tem influência direta em temas como saúde, assuntos militares, de educação, de software, de aviação. Naturalmente a China nega essas violações. Mas, na visão dos EUA, isso faz com que a concorrência e a disputa sejam desleais. Seria uma forma de a China cortar caminho na competição.

No fim das contas, é uma questão de segurança nacional e influência geopolítica. Os EUA entendem que a China consegue uma vantagem desleal por meio de violações de propriedade intelectual e espionagem industrial. Já os chineses entendem que os EUA buscam minar sua reputação e credibilidade para restringir o alcance comercial chinês. Tecnologia é um ponto crítico por possibilitar a oferta de produtos e inovações que ampliam o alcance comercial chinês, por isso a propriedade intelectual e as acusações de espionagem industrial amarram a questão de segurança nacional e influência geopolítica.

Na prática, como a China ameaça os Estados Unidos no campo tecnológico?

O desenvolvimento tecnológico é uma ameaça em um mundo totalmente conectado. Há cada vez mais sistemas financeiros, militares, sistemas de telecomunicações, de radar, de meteorologia, interligados por meio de servidores. À medida que um país desenvolve, entre outras coisas, inteligência artificial – um ponto que preocupa muito os americanos pelo avanço chinês -, você consegue afetar o funcionamento dessas áreas sem que o outro tenha pleno conhecimento disso.

A Huawei é um exemplo. Ela tem um produto de alto nível técnico, mas não transmite para parte do Ocidente a confiança de transparência na distribuição e do tráfego de dados em suas redes de banda larga e na tecnologia 5G. É uma tecnologia que também traz soft power, capacidade de expansão de outros produtos nessas linhas, que ocupa o mercado e também permite acesso a informações que preocupam os americanos.

Por mais que países possam desenvolver medidas de segurança, a velocidade na inovação faz com que novas tecnologias tornem as anteriores obsoletas, mesmo antes do detentor da tecnologia antiga perceber. Esse ponto cego abre a possibilidade de espionagem e manipulação de dados. À medida que a China se desenvolve tecnologicamente, o diferencial do poderio americano para o chinês diminui e abre frentes para ações mais ousadas dos chineses em relação a Hong Kong e Taiwan.

Há também uma disputa por áreas que estariam sob a influência das duas potências, certo? 

A China tem hoje uma vantagem que os EUA não têm: a capacidade de financiamento e de oferecimento de linhas de crédito a juros mais baixos e com regras mais simples que as oferecidas como, por exemplo, pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial. Na compreensão americana, essa expansão de linhas de crédito acaba gerando uma dependência. Os países ficam vinculados à China por muitos anos.

A China atrela como garantia para essas linhas alguns ativos públicos, como a prioridade para construir uma estrada, um porto, e aceita pagamento via commodities. Os EUA vão perdendo um pouco de espaço, principalmente em relação aos emergentes. O apelo da narrativa ideológica de valores clássicos ocidentais – como a democracia – se dilui na necessidade e urgência de certos países em obter financiamento para tocar o dia a dia de suas atividades.

A Argentina é um exemplo: mesmo com Macri no poder (aliado dos americanos), fechou acordo de financiamento e construção com a China para duas usinas nucleares. Isso gera dependência energética e restringe a influência americana na área. Essa situação se repete em vários países emergentes e reduz a margem de manobra de influência americana.

Como os EUA têm tentado conter esse movimento? 

Por enquanto, a estratégia de sanções contra empresas chinesas tem gerado mais efeito do que alertar sobre os riscos da falta de transparência dos produtos chineses. As sanções fazem com que o mercado não tenha confiança em investir em uma empresa chinesa pelo temor de que em meses ela pode estar inviabilizada. Isso fez com que a Huawei fosse severamente afetada.

Quando os EUA colocaram sanções sobre os fornecedores dessa empresa, geraram incerteza sobre a qualidade do produto final, principalmente depois de já a empresa já ter fechado contratos. As sanções inibem a capacidade de expansão de determinadas empresas chinesas, mas não solucionam o problema da dependência de certos países emergentes. Para isso, os EUA precisam de uma estratégia paralela, dissociada da China, em que emergentes voltem a reconhecer o valor de alinhamento com os EUA em substituição ao que a China oferece.

Como seria essa estratégia? 

Existem duas linhas de dependência perante a China: por meio de linhas de crédito e por meio de benefícios comerciais. No primeiro caso, as fontes tradicionais ocidentais de financiamento precisam se modificar para oferecer flexibilidade e facilidades nas obrigações que os países devem ter com o financiador. Caso contrário, obter financiamento chinês será sempre mais fácil burocraticamente, mesmo que isso represente um laço de dependência mais duradouro.

Na segunda linha, os EUA precisam oferecer acesso ao seu mercado de forma mais flexível e menos protecionista para que exportar aos EUA seja mais uma opção ao invés de ver a China como o único comprador viável. Um acordo de livre comércio entre Brasil e EUA tem dificuldades por conta da preocupação de produtores rurais americanos com a alta capacidade produtiva brasileira. O mesmo em relação aos produtores franceses. Resta então a China, o que gera dependência comercial.

Que outras armas os EUA teriam para conter esse avanço chinês? 

A maior arma que os EUA têm são sanções contra os bancos chineses. A China tem cerca de US$ 3,3 trilhões em bancos chineses que atuam no exterior. É o dinheiro que financia a maioria das linhas de crédito para vários países emergentes. Restrições ou sanções nesses bancos poderia prejudicar fortemente a capacidade chinesa de operar essa que é a maior política pública internacional que eles têm. É o maior mecanismo de engajamento chinês com outros países. Essa seria a maior pressão na China, que geraria uma retaliação à altura.

Poderia isolar o mundo em dois sistemas econômicos porque haveria países que optariam por violar as sanções e ter acesso ao financiamento chinês. As sanções na cadeia de fornecimento para produtos chineses produz efeitos, mas precisa estar alinhada com um estímulo de desenvolvimento de cadeias produtivas alternativas em outros países.

Uma mudança de governo americano após as eleições de novembro pode mudar a relação com a China? Os chineses teriam alguma preferência entre Trump e Biden? 

Joe Biden também tem uma postura muito agressiva em relação à China. Não há um antagonismo de visão. O que pode mudar é a forma da narrativa, mas não necessariamente o conteúdo. Na minha concepção, a China preferiria uma vitória do Trump. Isso não alteraria a narrativa anti-China que já está contabilizada por eles e vai ocorrer de um lado ou outro. Mas o Biden, adepto de uma linguagem mais diplomática, tem uma possibilidade de reorganizar uma aliança global dos EUA com velhos aliados que Trump afastou nos últimos anos. O diálogo com Macron, na França, Merkel, na Alemanha, e Shinzo Abe, no Japão, poderia funcionar de forma mais fluida.

Isso faria com que uma aliança anti-China fosse mais robusta do que a promovida pelo Trump. A China entende que está envolvida numa disputa de concepção de mundo com os EUA que durará muitos anos. A disputa não é necessariamente com os EUA, mas com a narrativa americana em outros países. Trump possibilita que a Alemanha tenha uma visão menos simpática à narrativa americana e isso, para os chineses, equilibra suas tentativas de impedir restrições no mercado alemão. Uma aliança americana robusta dificultaria a narrativa chinesa em aliados americanos, pois os EUA possuem mais elementos históricos de engajamento com a Europa e Japão do que os chineses.

Faz sentido falar que vivemos uma nova guerra fria ou isso é um exagero? 

A guerra fria tem de ser analisada no que ela literalmente quer dizer e não em uma comparação histórica com a União Soviética. Por que guerra fria? Porque há vários tipos de confrontação e verbalização agressiva entre os dois países, retaliações, provocações, mas que não culminam em uma situação militar. A partir do momento que os dois países se reconhecem como inimigos, podemos argumentar que existe uma guerra fria.

Um ponto de similaridade é o fato de que essa disputa ocorre em diversas arenas: tecnológica, posicionamento geopolítico, busca por alianças, dependências comerciais, dependência de linhas de crédito. A disputa não pode mais ser solucionada com um acordo comercial ou de propriedade intelectual. É preciso algo muito maior, já que o objetivo de cada lado implica no enfraquecimento do outro nessas arenas.

Há alguma previsão desse conflito arrefecer? 

Conceitualmente, são dois países opostos. O conflito não acontece por uma razão conjuntural ou um fato isolado que gerou uma contradição. Enquanto o Partido Comunista estiver à frente do governo da China, haverá essa visão antagônica com os EUA. Na China, o nacionalismo é muito forte, o patriotismo é elevado. Há a compreensão de que os EUA querem prejudicá-los.

A essência dos valores chineses guia suas ações no mundo e isso tira um espaço que antes era ocupado pelos EUA. Ao mesmo tempo, a China entende que todas as ações americanas visam, em última instância, minar o poder do Partido Comunista Chinês, logo, sua existência. Enquanto um sentir que sua existência conceitual está ameaçada pelo outro, não haverá acordos pontuais que resolverão isso. No máximo pausas e alterações momentâneas de foco.

Em que patamar está o Brasil dentro dessa disputa geopolítica? 

O Brasil está em uma condição diferente. Não precisamos de linhas de crédito e de financiamento, que é o principal ativo da China ao atrair um país para sua esfera de influência. No Brasil, a China precisa passar por procedimentos normais de licitação para executar obras públicas de infraestrutura, é similar a qualquer outro país. Por outro lado, o País é estratégico para a China por ter um mercado consumidor gigante. À medida que a China avança operações de suas empresas no Brasil, isso agrega credibilidade para elas atuarem em outros países ocidentais. Mas o Brasil é burocraticamente e tributariamente complexo e os chineses ainda não conseguiram decifrar isso. Por isso se restringem a poucas áreas, como agronegócio e minério.

A China possui uma linha estratégica clara em relação ao Brasil: fortalecer o processo de tomada de decisão a seu favor no Palácio do Planalto visando equilibrar o sentimento pró-americano. O país também pretende enfatizar a noção de importância estratégica comercial dentro do Ministério da Economia para criar um aliado pragmático dentro do governo, oferecer linhas de crédito e demonstrar interesse perante o Ministério de Infraestrutura para maior envolvimento nos programas de parcerias de investimentos.

Também busca explorar a possibilidade de expansão de importações com o Ministério da Agricultura e a bancada ruralista para fortalecer uma base aliada que possa ter voz favorável em assuntos não necessariamente relacionados ao agronegócio. E tenta garantir que a Huawei possa participar do leilão do 5G visando fincar o pé no maior leilão 5G do mundo e poder disseminar uma contra-ofensiva de narrativa de credibilidade.

Entrevista publicada no jornal Estado de S. Paulo. Link completo: https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,eua-veem-china-como-concorrente-desleal-e-disputa-durara-muito-anos,70003374978

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