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“Especialista” virou artifício editorial da imprensa para camuflar opinião

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Toda a vez que um periodista quer valorizar seu texto insere a palavra que virou chavão no jornalismo. Usar “especialista”, em vez de estudioso ou observador, por exemplo, visa dar credibilidade à informação. Como se especialistas fossem fontes neutras. Não são.

 

Ao lado da nova mania de dispensar as vírgulas nos apostos, o artifício dos “especialistas” virou regra na imprensa. Não existem mais advogados, economistas, ambientalistas ou médicos. Todos viraram “especialistas”.

Na prática, duas conveniências convergem no uso exaustivo do termo. Catapultar artificialmente a qualidade da informação & editorializar as matérias.

Alguns exemplos.

Especialistas criticam decisão do governo de alterar normas sanitárias. Dito assim, não há dúvida, o governo errou.

Mas, que tal assim? Consultor do setor alimentício critica decisão do governo de alterar normas sanitárias.

Outro. Medidas que alteram as normas ambientais foram criticadas por especialistas.

De outra forma. As medidas foram criticadas por ambientalista crítico ao governo.

Em frente. Tribunal condena empresário da construção civil à prisão e é criticado por especialista.

E se a notícia fosse escrita de outra forma? Advogado do setor imobiliário critica condenação de empresário da construção civil.

Mais um. Especialistas condenam prisão em segunda instância.

E assim? Advogados de milionários acusados de corrupção defendem condenação somente depois de decisão final do STF.

Se veio do Congresso, não presta

As votações do Parlamento são invariavelmente desconstruídas por especialistas. Alteração em projeto sobre saneamento é criticada por especialistas.

Enquanto o Parlamento representa todos os eleitores e sofre abertamente todas as pressões, quem são os especialistas? Engenheiro ligado à associação de empresários do setor aponta retrocesso em projeto aprovado no Congresso Nacional.

Neste caso, uma única fonte, por vezes obscura, é mais valorizada do que semanas ou meses de debates em comissões e plenários da Câmara e do Senado.

Não faltam exemplos nos matutinos, nas televisões, nos rádios e nos portais da internet de jornalistas que se valem dos especialistas para incrementarem seus textos. Alguns recursos estilísticos inflam o artifício.

Por exemplo, o periodista cita um único especialista na tentativa de desmontar toda a argumentação de uma ou mais fontes conhecidas e claramente identificadas.

Porém, ao longo do texto, o jornalista potencializa o valor do crítico. Em vez de usar o termo no singular, passa a empregá-lo no plural.

Ora, especialistas são muitos. Assim, não há dúvida que estão certos. Enquanto isto, a iniciativa da fonte (ou equipe) é considerada equivocada e mal elaborada.

Pior ainda é a citação do especialista em off. Tão evidente é sua parcialidade que não pode se expor.

Fontes ligadas ao mercado financeiro disseram que a decisão do Banco Central vai provocar aumento dos juros. Óbvio, a autarquia está errada.

Outro recurso é elevar todo professor universitário à condição de especialista. Como se não houvesse tendências políticas bem conhecidas na academia. Também é comum valer-se de genéricos consultores, como se estes não cobrassem por seus conselhos.

Editorial não é reportagem

O emprego, cada vez mais recorrente, serve para gabaritar a matéria. Afinal, o especialista é alguém que “possui habilidades ou conhecimentos especiais ou excepcionais”, define o Houaiss.

Ao mesmo tempo, o especialista ajuda a confirmar a visão do periódico. Funciona como um editorial sem cara de editorial.

O jornalismo tradicional – indispensável à informação de qualidade, garantia da democracia e credibilidade – não precisa deste artifício. É possível ouvir mais de um lado sobre o mesmo tema dando nomes às fontes, bem como suas tendências.

Não existe isenção ou imparcialidade absolutas na imprensa. Por isto é necessário informar deixando claro quem é a fonte.

O termo especialista camufla a fonte ouvida. Torna-a isenta sem sê-la.

Vira um truque jornalístico para valorizar a opinião contrária e redigir editoriais onde deveria existir reportagem. Não é honesto.

Um consultor ligado ao agronegócio tem direito de criticar a política ambiental de determinado governo. Porém, o leitor tem o direito de saber quem é o especialista e para quem ele trabalha.

Um economista de uma corretora pode discordar de uma decisão da equipe econômica. Mas não é isento, como sugere a palavra especialista.

Não existe fonte isenta

Abusar do recurso, como acontece atualmente, induz o consumidor de informação a acreditar que a fonte criticada errou ou é despreparada. Do outro lado, um genérico especialista ganha ares de doutor-sabe-tudo.

Um sociólogo entende mais de segurança do que policiais? Um professor universitário conhece mais sobre relações internacionais do que diplomatas?

Jurisconsultos diletantes sabem mais de direito do que juízes? Tributaristas são mais versados em impostos do que auditores-fiscais?

Fontes devem estar bem identificadas. O contraditório objetivo deve ser regra. A melhor maneira de valorizar uma reportagem é com informação de qualidade.

Não existem fontes isentas. Todas têm seu interesse, que deve ser claramente exposto para que o leitor julgue a reportagem como lhe aprouver.

Agora, se faltam sinônimos menos parciais, eis algumas sugestões: pesquisador, estudioso, analista, observador. Mas, seja qual for o substantivo, é preciso informar para quem a fonte trabalha e quais são seus interesses.

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