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O Tempo e o Sagrado

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Estar perto do cemitério foi a razão para que Ichiro Tarawa, de 77 anos, voltasse à Namie, uma das cidades devastadas pelo tsunami na costa japonesa em 2010 e afetada pelo vazamento de radiação da usina nuclear de Fukushima. Queria poder visitar o local onde estavam enterrados seus ancestrais.

O arquiteto Nestor Razente se dedica a estudar cidades e povoados que foram abandonados: as cidades fantasmas. Em seu livro – Povoações Abandonadas no Brasil (Ed. Duel) –, Razente tenta explicar por que as cidades simplesmente são abandonadas. Os motivos apontados são variados. Inundações, fim de ciclos econômicos ou, no caso mencionado por mim, por uma tragédia natural e um desastre nuclear.

Em entrevista, Razente revelou que não se chega a uma resposta lógica. Porém, disse algo espetacular: o sagrado resiste ao tempo. Informa ele que as igrejas e o cemitério foram as únicas construções que resistiram ao tempo e à depredação nas várias cidades investigadas. Apontou a existência de duas forças de preservação: a crença religiosa e o respeito aos mortos.

No livro “Crença, nossa invenção mais extraordinária”, o historiador Matthew Kneale pondera: “A história humana pode ser mais bem compreendida não por meio da postura transparente da lógica e da descoberta científica, mas das águas turvas das crenças profundas, emotivas e, às vezes, francamente bizarras”.

Os estudos de Razente me levaram a refletir sobre outro aspecto: o declínio das religiões. Seja pela pulverização de denominações e segmentos no universo cristão, seja pelo radicalismo que contamina o Islã e a religião judaica. Será o fracasso das três grandes religiões monoteístas que têm mais semelhanças do que diferença? Tema para outra reflexão.

O declínio das religiões é apontado como uma realidade. Pesquisa Gallup realizada em 2014 constatou que o percentual de ateus no mundo subiu de 3% para 13% da população mundial entre 2005 e 2011.

Será que o declínio das religiões irá afetar a sobrevivência do sagrado com o passar dos tempos? Tempos de alta tecnologia, de crematórios e de escassos momentos para os rituais que sustentaram a crença nas religiões. Missas, batizados, primeira comunhão, entre outros rituais, conseguirão sobreviver ao largo do fanatismo radical? Enfim, os rituais vão subsistir à avassaladora velocidade dos acontecimentos?

Prosseguindo nas dúvidas, o aumento do ateísmo nos levará a uma forma inexorável de niilismo, onde a vida somente sobreviverá de forma doentia? Marcada por um extremo pessimismo e ceticismos com relação a tudo e a todos. Ou será que a tecnologia que impulsiona e revoluciona o mundo irá conter a destruição das religiões?

Enfim, antes de me afogar em tantas perguntas que não consigo responder, volto ao ponto inicial. O sagrado resiste ao tempo, diz Razente. O que me leva a um novo ciclo de indagações. Com a ameaça às crenças religiosas, como o tempo futuro irá preservar o sagrado? Será pela escrita ou nas nuvens digitais, nos templos que serão cada vez maiores e cada vez mais escassos?

As cidades não comportam mais dezenas de igrejas, como nos tempos do Brasil Colônia. Serão os templos transformados em pequenos templos de bairro, como faz a Igreja Universal, que servem de satélites para mega templos high-tech? Ou a nossa fé estará sendo reverberada nos smartphones, em velas virtuais e nas pregações transmitidas pela internet?

Em meio a um mar de dúvidas, sobrevivem duas certezas: as religiões, que também sempre foram um espetáculo, terão que se adaptar à nova civilização do espetáculo. A outra certeza está no cemitério de Namie e de tantas outras cidades abandonadas: o sagrado vai resistir ao tempo.

Publicado no Blog do Noblat em 16/03/2017

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