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Ponta de faca

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Ao contrário da história dos Estados Unidos, nunca existiu no Brasil pensamento político hegemônico que orientasse caminhos e ditasse comportamentos. Lá, os pioneiros, fugidos da perseguição religiosa, decidiram criar uma sociedade aberta, democrática, igualitária, composta por homens e mulheres brancos, que desfrutariam de liberdade de credo e elegeriam um administrador, para substituir a figura do Rei, com mandato determinado. Assim surgiu a figura do presidente.

O penoso processo de integração racial nos Estados Unidos decorre deste pensamento hegemônico. A sociedade era branca e escravagista. Não havia intermediação. Lincoln, sempre muito festejado como também um dos fundadores da pátria, propôs a criação de um país na África para receber negros retornados. Ajudou a criar a Libéria. Mais tarde percebeu que não havia escapatória ao processo de integração, que até hoje é difícil, conflituoso e agressivo. Apesar de o presidente Obama ser negro.

O Brasil foi colônia de Portugal. Era um pedaço de terra protegido por todos os lados. A colônia só podia fazer comércio com a matriz. A terra dos papagaios era o local para onde os portugueses vinham sozinhos, se amasiavam com índias ou negras, e posteriormente retornavam milionários a Lisboa. Era o local onde não havia pecado, nem pessoal nem social. O fundamental era contornar as normas ditadas pelo Reino, fazer contrabando, comerciar minérios, ou escravos. Enfim fazer fortuna. A história do Brasil é essa. A transformação da colônia em país independente não conseguiu enfrentar a história.

O Brasil continua a ser uma sociedade a ser saqueada, roubada e abandonada. Os políticos nunca se entenderam quanto ao modelo de sociedade. O Império consolidou as fronteiras nacionais e enfrentou a guerra do Paraguai. O país independente ficou maior do que a colônia. D. Pedro II permaneceu no poder por mais de 48 anos. Morreu em Paris, deposto, junto de familiares, de sua amiga mais íntima a Condessa de Barral, com notáveis dificuldades financeiras. Foi enterrado na capital francesa com honras de chefe de estado. Antes, sua filha assinou a Lei Áurea.

A República é, no Brasil, um desfilar de crises. Ela foi proclamada por militares descontentes com a relação do Imperador com o exército. Os dois primeiros presidentes da República foram oficiais de alto escalão. Problemas se sucederam, mas a exportação de café conseguia contorna-los. A queda da bolsa de Nova Iorque de 1929 levou o país à falência. Neste cenário surge Getúlio Vargas que dominou a cena política até o fim da Segunda Guerra. Criou o sindicalismo no país. Voltaria ao poder pela via eleitoral nos anos cinquenta. Caiu depois que foi pego em transações políticas pouco elogiáveis. Há controvérsias até hoje. Seu herdeiro político, Jango, chegou ao poder depois da renúncia de Jânio. A agenda daquela época era muito semelhante à da ex-presidente Dilma Rousseff.

As ideias sindicalistas, chamadas de esquerdistas, não mudaram em nada nas últimas décadas. Ganharam mais ou menos cor vermelha, mas no fundo permaneceram idênticas. Há perigosa identidade entre as propostas de Jango e de Dilma Rousseff. Os dois caíram. Um pela força das armas, outra pelo impeachment. A experiência política da esquerda no Brasil deveria ser reavaliada. O Partido dos Trabalhadores chegou ao poder e se lambuzou todo. Desfrutou dos melhores vinhos, dos melhores hotéis, utilizou verbas federais, estaduais e até municipais para sustentar a farra. Resultado: antes da eleição, detinha 638 prefeituras e comandava 38 milhões de pessoas. Agora, tem 254 e mantém poder sobre apenas 5,9 milhões de indivíduos.

O desastre da esquerda no Brasil não é apenas fracasso do Partido dos Trabalhadores. É uma debacle para o pensamento de vanguarda. O processo de redemocratização em Portugal e na Espanha foi alcançado por intermédio de partidos de esquerda e direita que conseguiram avançar no processo democrático. Aqui, ao contrário, a busca da hegemonia impediu a realização de acordos verdadeiramente programáticos que resultassem em proveito de toda a sociedade.

O presidente Lula não foi convidado a participar de nenhum comício no segundo turno. A ex-presidente Dilma Rousseff não votou em Porto Alegre porque não tinha candidato. Os dois se tornaram apêndices em processo político de que foram protagonistas. É uma tragédia política abissal. Demonstra que o inconsciente coletivo aponta para um caminho no Brasil. Bater de frente com este ensaio de pensamento político significa derrota certa. É dar soco em ponta de faca.

Publicado no Correio Braziliense em 05/11/2016.

 

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