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O sindicalista e a getulista

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Ciclos eleitorais não podem determinar a extensão do controle do Estado sobre a vida dos cidadãos. Quem acha que as coisas são fáceis não sabe o que, de fato, está acontecendo. O fluxo do rio se impõe sobre a improvisação que altera seu leito.

I

A balbúrdia do trauma vivido pelo PT, que atinge seu clímax nesta semana, foi a política de pleno uso da sociedade, feita, de forma autoritária e incoerente, por seus dois governos.

A psico-história dos dois líderes petistas, que alcançaram o posto mais alto pretendido por um partido democrático, desviou a viagem de seu rumo. Levados por traços de personalidade, confundiram a soberania simbólica da autoridade com a legalidade de qualquer dos seus atos. Decifrado o enigma da incoerência dos dois – um fazendo tudo para ser assimilado por todos, outra orgulhosa de não se interessar por ninguém – veio o impeachment: é nulo o valor crítico de quem desfruta do objeto criticado.

“Ninguém aqui tem moral para julgar a presidente” é a frase síntese do suicídio político de uma getulista que não aceita a opinião de quem usou enquanto foi possível.

Eles não quiseram que sua gloria viesse da sociedade democrática. Foram histórias pessoais que a erigiram. Um com golpe de Estado; outro com muito esforço; outra como dádiva imerecida. Eles se instituíram como personagens mágicos. Quando se enfraqueceram, por erros intransferíveis que cometeram, sentiram uma desrealização de seu sucesso. Começaram a atacar o presente, que usaram ao máximo na coalisão política sem princípio, para dele escapar, quando viram frustrada a sagração de seu passado.

Quem acertava o alvo não era mais ele. E ele, que passava sem grandes danos de uma sociedade à outra, teve sua fuga para a elite que criticava interrompida. Inesperadamente, por um jovem juiz que, nos anos 1990, seria, por ele, considerado petista. E a parcela de poder que teve durante anos se revelou sem eficácia para influenciar o mundo que supunha ter penetrado.

Sem se darem conta da finitude dos fatos históricos, e da maior estabilidade das instituições, se surpreenderam com o momento que sua época deixou de sustentar sua história.

E a dificuldade encontrada para buscar apoio para a sua história é que ela não está ancorada dentro do período que a sustentava. O sujeito atual, que busca proteção, está temporalmente esgotado e, assim, não recebe solidariedade para separar seu erro do dela. Sente-se perseguido por não se ver alimentado pela vida política anterior que o consagrou.

Quando o que está ocorrendo é isto mesmo: o Brasil está mudando e, é um fato, que o outro sujeito, antigo, não possa explicar como desfrutou dos expedientes próprios de uma determinação específica do uso do poder, que o pais quer ver superada. Por isso não aceita que, agora, que não tem mais influência para determinar as perguntas que tolera, alguém possa romper a tradição e anunciar, antes do historiador, a morte de um período histórico com seu principal personagem ainda vivo.

Ele não quis ser um líder novo. Desenvolveu com habilidade temas velhos, mas como não tinham estrutura cultural própria, sólida, diversificada, morreu do pecado que imitou. Se agarrou nas manias do velho Vargas, e afundou com sua sucessora.

Quando foram a OEA e a ONU pedir proteção, última etapa da peregrinação para condenar a democracia brasileira à desordem, com o pretexto de manter em ordem suas histórias, nem se deram conta que o que os motivava era seu passado de Chefe de Estado. Como se um homem, uma mulher, fossem todo um país, o último do mundo.

II

Ele oferecido, volumoso, rude em sua espontaneidade, deu amplo consentimento a liberdades que o fizeram mal lembrado. Ela discreta, secreta, sem graça, não sabia fazer-se desejada e, por sua culpa, acabou esquecida. Um se divertia abrindo porta; a outra se irritava batendo porta.

Um ensinado a sobreviver; a outra ensinada a aborrecer-se. Ele, inseguro, pôs para dentro os abaixo de sua condição; ela, soberba, pôs para fora os acima de sua capacidade. Um julgava necessário discursar todos os dias como se duvidasse de sua condição de governante; para a outra, necessário era esconder as razões que a fizeram escolhida.

Pois aquela escolha continha um repúdio a todos os outros. Não havia nenhuma necessidade de passar o anel de forma secreta. A não ser para consolidar simbolicamente o encontro de duas religiões autoritárias: sindicalistas e getulistas. É que aquele homem autossuficiente só tinha uma ilusão: não perder as prerrogativas, por julgar-se incomparavelmente indispensável.

Não há bom sucessor para líder sindical. Um agravo que o tempo e os costumes fazem da vida de hierarquia, benesses, conflito e bajulação que Vargas implantou. O líder da vez deita sobre o liderado e o esmaga, é assim no mundo das organizações sindicais e partidárias. Sem se interessarem por leituras e outros exemplos de gestão, organização e liderança não foi difícil os ver passar do idealismo absoluto para o pragmatismo total.

Da vida sindical aprendeu a mandar; da vida política aprendeu a obedecer. Mas mandar e obedecer são a mesma coisa. Quando esta equação o fez escolher sua sucessora não acreditou que a regra da obediência se transferisse para ele. E como não aplicou nas instituições nenhum remédio antiautoritário, para parecer humilde diante de seus adversários, fez do PT um parasita de suas veleidades. Mas ao tirar do partido seu sangue moderno não teve apoio para inverter a regra tradicional que rege a vida política desde sempre. O que eles queriam dos partidos era um certificado permanente de sua inferioridade, para usá-lo como proteção e desculpa quando esbarrassem em dificuldade.

Não é que ela venha de fora, do olhar, da conversa, das leituras, da experiência. A liberdade que sustenta a coerência e o respeito à opinião dos outros vem de dentro da pessoa que já tenha dentro dela a liberdade.

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