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O crédito do herói

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Recentemente assisti a um filme do leste europeu – no qual não me lembro o nome – que se passava na Romênia. Na história, um homem que havia salvado uma criança de um prédio em chamas tornou-se imediatamente um herói local. De desconhecido a salvador de uma indefesa criança, as portas da cidade se abriram para ele. De repente, restaurantes ofereciam almoços de cortesia, lojas de roupas o premiavam, entre outros agrados. Enfim, tudo estava à disposição do sujeito que, pela intuição positiva e espírito de coragem, salvou uma criança de um destino trágico.

Sua popularidade o levou a abandonar o emprego em uma fábrica local. Durante alguns meses, ele viveu dos bônus daquele feito maravilhoso. Na cabeça do homem, humilde, mas cheia de orgulho pelo próprio feito, aquela adoração duraria para sempre.

Assim como o sucesso de dia, o sucesso de noite passou a fazer parte de sua vida. Homem de boa aparência, muitas mulheres queriam sua companhia, mais pela vontade de estar com uma subcelebridade do que por qualquer outra coisa.
No entanto, o feito heroico começou a mexer com algumas características psicológicas do nosso personagem. Em uma construção muito bem-feita, o roteiro mostra como ele desenvolveu um mecanismo de justificativa para si próprio, a partir do momento em que suas atitudes começaram a se desviar do que antes ele próprio tratava como ético e moral. Aquele gesto salvador havia criado nele a sensação de crédito perante o sagrado e a sua própria consciência, que o levava impulsivamente a cometer desvios de conduta.

Aos poucos, a cidade começou a afastar-se dele, levando-o a aumentar a gravidade de seus atos para chamar atenção. Nosso herói começou a beber impulsivamente, as companhias que o bajulavam espontaneamente deram lugar à prostituição. Drogas surgiram com a promessa de transportá-lo da realidade que passou de divina a assustadora em questão de meses.

O ato de bondade, instinto e coragem desencadeou um processo de autovalorização e uma liberdade para cometer desvios que o levou a destruir-se aos poucos. Sua vida acabou a partir do momento em que ele mesmo perdeu a dimensão do bem que havia feito e esperava que aquilo fosse suficiente para o divinizar perante a sociedade.

No fim, a história conclui que as boas decisões, se não forem tratadas como “a coisa certa a se fazer, simplesmente porque são”, transformam-se em monstros geradores de uma megalomania que leva a autodestruição. O orgulho e o sentimento de divinização aceleram a morte em vida.

Enquanto subiam os créditos, eu comecei a pensar que aquela história não me era estranha. Eu havia presenciado algo semelhante, mas não me lembrava onde. No dia seguinte, lendo o jornal no café da manhã, me deparei com a foto de um importante personagem do nosso mundo político. “Era dali que eu me lembrava de ter visto aquela história!”, pensei.
Nosso herói da vida real, que, de fato, salvou várias crianças de “prédios em chamas”, viveu anos com os tapinhas nas costas e o culto à própria divinização. Era espontâneo e sem induções a recordações de seus feitos.

Incrivelmente, como no filme, os anos passaram e ele precisava lembrar a sociedade de sua história. Da lembrança veio a exigência do reconhecimento que havia cessado e com isso o sentimento do crédito, mais do que merecido, para desvirtuar-se. Não vi o fim desse personagem da vida real, mas o roteiro está enigmaticamente semelhante ao do nosso herói, ou “ex-herói” romeno.

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